“Fazei o que ele vos disser”: por uma Igreja com o rosto de Jesus de Nazaré
Pe. Jaldemir Vitório – Religioso Jesuíta
Vale a pena revisitar essa declaração, sobejamente conhecida, posta na boca de Maria de Nazaré, na catequese do evangelista João (Jo 2,5). O contexto das bodas em Caná da Galileia ofereceu-lhe a ocasião para mostrar quanto é necessário dar ouvidos a seu filho, em situação de apuros, onde um momento festivo corria o risco de terminar em tremendo fiasco. A cultura da época tomava as festas de casamento como metáfora do banquete do fim dos tempos, que Deus está preparando para a humanidade (Is 25,6; Lc 14,15). A falta de vinho tornava-se mau presságio para os noivos que, incapazes de ter bebida suficiente para chegar ao término das celebrações, seriam excluídos das alegrias escatológicas. Pelo fato de os serventes terem obedecido a ordem do convidado Jesus, embora podendo soar estranha, considerando ser um simples hóspede, o risco da frustração foi afastado. A festa chegou a bom termo com a oferta abundante de vinho da melhor qualidade, reconhecida, até mesmo, pelo chefe dos garçons que, chamando o noivo, se mostrou admirado por ter guardado o melhor vinho para ser oferecido aos convidados já embriagados por vinho de qualidade inferior.
A advertência mariana – “fazei o que ele vos disser” – pode ser aplicada a tantas outras passagens evangélicas. Encontramos na catequese de Mateus uma série de ilustrações de obediência à ordem de Jesus. Quando diz aos discípulos: “segui-me e farei de vós pescadores de homens” (Mt 4,19). Quando ordena ao publicano Mateus: “segue-me” (Mt 9,9). Quando manda que lhe tragam os cinco pães e os dois peixes e fala para as multidões se organizarem, por ocasião das multiplicações dos pães (Mt 14,18-19; 15,35). Quando desafia Pedro a andar sobre as águas, caminhada interrompida por medo (Mt 14,30). Quando Pedro recebe a ordem de jogar o anzol ao mar, pegar o primeiro peixe, abrir-lhe a boca, retirar a moeda e pagar o imposto do templo, o discípulo obedece sem pestanejar (Mt 17,17). Quando instrui os discípulos de como devem preparar a ceia pascal, eles o fazem como lhes fora orientado (Mt 26,18-19). Outros muitos exemplos de obediência à palavra do Mestre podem ser pinçados das catequeses evangélicas. O discipulado se faz como acolhida e prática do querer de Jesus por todos os batizados e batizadas, bem como pela comunidade, a Igreja almejada por ele. Fazer-se surdo ao que manda o Mestre, ser-lhe desobediente ou lhe virar as costas são atitudes indignas de quem se dispôs, pelo batismo, a levar adiante a missão confiada a seus seguidores e seguidoras.
Com o passar dos tempos, as coisas tomaram um rumo, inteiramente, contrário ao querer de Jesus. Seus ensinamentos foram trocados por outros. Sua sabedoria de vida foi substituída por dogmas e doutrinas. Seu lugar foi ocupado por pessoas que se sentem donas da religião cristã e das igrejas autoconsideradas cristãs. As catequeses evangélicas cederam lugar a livros de autoajuda, devocionários piedosos carentes de consistência evangélica, catecismos água com açúcar, revelações ditadas a videntes, ensinamentos de fundamento duvidoso sem a devida filtragem. Os desvios são múltiplos e de enorme abrangência. O espaço para novidades permanece sempre aberto. São todas maneiras de não fazer o que Jesus manda!
Resultam daí comunidades cristãs, de todas as cores, desconectadas de Jesus. Entretanto, o invocam e o evocam, como se tivesse alguma importância em suas vidas. Em nossa Igreja, cantamos: “Jesus está aqui, tão certo como o ar que eu respiro”. Ou: “o meu coração é só de Jesus!” Será? Na liturgia eucarística, proclamamos: “Ele está no meio de nós”. Será? Um canto muito bonito diz: “eis o que eu venho te dar, eis o que eu ponho no altar, toma, Senhor, que ele é teu, meu coração não é meu”. Realmente, estamos dispostos a colocar nossos corações, inteiramente, nas mãos de Jesus e lhe permitir que faça deles o que bem desejar? Ou, então, “amar a ti, Senhor, em todas as coisas e todas em ti; em tudo amar e servir”. Imaginemos se todos os cristãos e cristãs, de verdade, vivessem para amar e servir, como Jesus! Muitos estão preocupados em defender a sã doutrina e a tradição cristã. Todavia, aceitariam perguntar a Jesus se ele está de acordo com o moralismo e o legalismo vazios que pregam, com frequência avessos à misericórdia compassiva tão própria do Mestre de Nazaré? Quem se coloca como juiz implacável do Papa Francisco, se dá ao trabalho de comparar suas posturas e ensinamentos com aqueles do Papa, tomando o Evangelho como parâmetro? Quem assume posturas intolerantes, maldosas, sectárias, quando não violentas, em nome da fé cristã, tem consciência do quanto está distante do mandamento do amor, central na vida e na pregação do Mestre?
Torna-se urgente que todos os batizados e batizadas, com a atitude de Maria de Nazaré, disponham-se a fazer tudo o que Jesus nos determina. Um caminho incontornável consiste na volta às catequeses evangélicas, verdadeiras propostas de iniciação cristã das primeiras comunidades. Uma leitura pausada e meditada de cada evangelho, com o propósito de recuperar os ensinamentos do Mestre, sua sabedoria, bebendo nas fontes, torna-se indispensável para quem deseja ver nossa Igreja assumindo o rosto do Mestre e Senhor, Jesus de Nazaré.
Um canto-oração expressa bem tal anseio: “Jesus, Jesus de Nazaré, o teu semblante eu quero ter; tal qual és tu eu quero ser. Jesus, Jesus de Nazaré”. Como seriam bonitas nossas comunidades, se deixássemos de lado tantos penduricalhos que fomos atrelando às nossas Igrejas, a ponto de desfigurar o rosto de Jesus, que deve transparecer! Como seriam atraentes nossas Igrejas, se não valorizássemos tantas coisas desnecessárias e obsoletas, pelas quais brigamos e nos dividimos e nos centrássemos no essencial: o evangelho do amor! Como seríamos “sal da terra”, “luz do mundo” e “fermento na massa”, se nos tornássemos “Igreja em saída”, nos passos do Mestre-Missionário, cujos discípulos e discípulas são enviados ao mundo, para anunciar o evangelho do perdão, do amor, da misericórdia, da acolhida. Como seria profética nossa Igreja, nos passos de Jesus de Nazaré, se o foco da pregação fossem os temas bíblicos do direito, da justiça, da misericórdia e da fidelidade, tão presentes nas páginas das Sagradas Escrituras (Mt 23,23)! Enfim, como teriam o rosto de Jesus, se nossas Igrejas se preocupassem com os pobres e os sofredores deste mundo, e se ocupassem em lhes curar as feridas e ser para eles o bom samaritano do Evangelho, de quem o Mestre disse: “vai e faze tu o mesmo!” (Lc 10,37).
Já passou da hora de praticarmos, efetivamente, o que Jesus nos está mandando!
Pe. Jaldemir Vitório, SJ é professor e pesquisador no departamento de Teologia da FAJE