‘A pandemia da desesperança: seria a tentativa de suicídio como alívio para a dor existencial?’
Juliara Machado Goulart
Embora a pandemia do novo coronavírus SARS-CoV-2, o qual manifesta a enfermidade Covid-19, ter sido detectado e reconhecido no dia 12 de dezembro de 2019 em Wuhan, China, aqui no Brasil isso aconteceu em final de fevereiro e início de março de 2020. A primeira morte ocorrida no Brasil pela Covid-19 aconteceu com uma mulher de 57 anos em 12 de março em São Paulo, e não 16 de março como inicialmente se pensou. O primeiro Decreto de restrições para a vida social e a vida laborativa dos trabalhos considerados não essenciais ocorreu no Estado de São Paulo em 22 de março de 2020. Em 24 de março de 2020 as capitais de São Paulo e do Rio de Janeiro decretaram suspensão das aulas, dos trabalhos não essenciais, fechamento de cinemas, teatros, templos, áreas públicas de lazer e outros. Medidas que foram seguidas por outros municípios e Estados, de acordo com as necessidades.
Recordar brevemente esse histórico nos aguça a memória e os estados emocionais para não nos alienarmos numa espécie de ‘amnésia seletiva’ e fantasiosa do tempo, Chronos, e da verdadeira realidade; de termos consciência do quanto faz muito tempo que nosso dia a dia e nossas relações sociais e laborativas modificaram drasticamente em um ano. A enfermidade Covid-19 dá-se por uma contaminação que se alastra fácil e rapidamente e que tem como crucial característica comprometer diretamente nossa maior necessidade básica para vivermos que é o aparelho respiratório. Dessa forma, a pandemia pelo novo coronavírus trouxe consigo a limitação e fragilidade das instituições humanas e dos conhecimentos e saberes frente á presença possível e real da morte por asfixia.
É do conhecimento da medicina, psiquiatria e psicologia que, quando o sujeito se sente ameaçado e inseguro, desenvolve principalmente quadros clínicos patológicos ligados à respiração que podem evoluir para o medo de morrer. As diversas expressões da ansiedade, desde o mal estar, tonturas, desmaios ou mesmo a crise aguda de ansiedade conhecida como “pânico’, todas influenciam diretamente no ‘como’ o sujeito pode respirar. Geralmente a respiração ansiosa e amedrontada dá-se rapidamente e curta, sem profundidade e, por essas características, oxigena de forma deficiente seu organismo, sobretudo coração e cérebro. Com essa breve explicação, fica claro entender que o temor de ser contaminado pelo novo coronavírus e desenvolver os sintomas da Covid-19 tem nas representações sociais construídas por essas informações um estado que vai da tensão ao pânico, podendo até formar um quadro fóbico, e isso para todos os sujeitos que antes mantinham um equilíbrio bem aceitável para lidar com seu cuidado pessoal, o de sua família, trabalho e relações sociais. Já para aqueles que portavam ou já manifestavam um quadro psiquiátrico, houve o agravamento que se tornou um estado mais delicado. Sendo assim, para alguns sujeitos o quadro emocional chegou ao nível do insuportável de viver pela lembrança diária da morte pela agonia da dificuldade de respirar.
Vale aqui ressaltar que a ideia da morte não está presente nesse momento de pandemia somente pela possibilidade de contaminação, mas através dos noticiários recorrentes sobre os detalhes do assunto, também através das restrições na liberdade de ir e vir, bem como da carência dos lazeres externos à moradia, criando, digamos assim, um estado emocional ‘nublado’, com um olhar menos ‘colorido’ de ver a natureza e a vida.
Existiu e ainda existe nas pessoas o medo imaginário ou real da sensação terrível de abandono e solidão a partir do momento que, ao terem a confirmação da sua contaminação e necessitarem da internação, precisarem se separar dos familiares e rostos conhecidos, pois é uma internação solitária, sem acompanhante. Doloroso também é o momento em que uma família e amigos perdem a vida de alguém pela Covid-19 e não podem estar juntos amparando-se e despedindo-se do ente querido num rito religioso, como o é natural na nossa cultura.
‘Pandemia’ quer dizer o quadro de uma enfermidade amplamente disseminada, dessa forma afeta e diz respeito ao coletivo. Assim, podemos afirmar estarmos vivenciando uma espécie de ‘luto coletivo’ se acumularmos ao temor da realidade da pandemia às estatísticas diárias das mortes dadas nos noticiários, as perdas de parentes e parentes de amigos, o isolamento entre as famílias – cada família nuclear em sua casa-, a ausência da vida regular das crianças e jovens da escola e da socialização entre si, além dos desempregos. Nesse contexto, podemos afirmar que a pandemia pelo novo coronavírus SARS-CoV-2 não faz da Covid-19 apenas uma enfermidade no corpo, mas, visto que ‘enfermidade’ tem sua raiz no latim infirmus que adjetiva ‘impotente’, ‘fraco’, ‘frágil’, a pandemia representa o adoecimento do todo do ser humano, seja na sua individualidade ou no coletivo, por ‘falta de firmeza’, a insegurança, advinda de representações sociais construídas nesses meses, bem como pela carência de maior conhecimento da ciência para lidar com essa doença e suas consequências.
Precisamos enfrentá-la, sejamos nós profissionais da área da saúde, da espiritualidade, e mesmo da área governamental pública de todas as esferas. O chamado ‘novo normal’ de normal não há nada. Tudo ou quase tudo do que antes conhecemos e vivemos foi violentado pelo infirmus, a falta de firmeza, da nossa realidade conhecida e compartilhada, abrindo assim largo caminho para a falta de sentido da vida atual e a grande dificuldade da projeção de planos futuros para as nossas vidas, sobretudo as dos jovens e das crianças que estão nascendo nesse momento crucial da humanidade.
Dizemos, entre nós profissionais da saúde mental, que o anormal é se sentir normal num contexto como esse. Isso não significa desenvolver uma doença propriamente, mas, pelo menos, a não indiferença ou anestesia emocional. Não cabe num quadro social mundial grave como esse espaço para a alienação e o negacionismo. Os atos autodestrutivos de qualquer tipo ou idade, como se mutilar e colocar-se em perigo, demonstram claramente esse vazio de significação do que hoje vivemos e que nos remete a um futuro tão incerto que parece não ser possível de vir a existir.
Precisamos ser provocadores de sentidos da vida! Observamos que os profissionais ligados às saúdes física e mental, assim também os da saúde espiritual como os sacerdotes, pastores, religiosos e religiosas, foram intensamente requisitados durante todo esse período, e ainda o são.
Salientamos que os quadros psicológicos e psiquiátricos que foram deflagrados abertamente durante esses últimos doze meses, não foram criados durante esse período, mas expostos. Os ‘estados’ depressivos, podemos considerá-los como uma reação adequada à realidade presente, no entanto isso não isenta pessoas, familiares, profissionais, sacerdotes e outros de orientarem a um tratamento para possibilitar uma qualidade melhor de vida nesse tempo que ainda será demorado, bem como prevenção para que não haja algum agravamento. Já a Depressão Maior, que é uma doença e não um estado, é desencadeada em tempos de grandes mudanças na vida de quem a porta geneticamente, não tendo necessidade de um caso tão grave como o é essa pandemia para manifestar-se, mas que, sem dúvida, esta favorece o seu desencadeamento e a agrava. Assim como nossa personalidade e temperamento ficam bem intensos em momentos de crise, mesmo que não sejam manifestadas patologias, assim as doenças psicológicas e psiquiátricas também se intensificam. Nada é criado numa pandemia, mas desencadeado ou agravado, inclusive o sujeito apto à tentativa de suicídio.
O fato de podermos ter uma clareza e melhor conhecimento não nos isenta de relaxarmos em todas as normas sanitárias tão bem desenvolvidas por cientistas e médicos. Muito pelo contrário, honramos a eles, ás nossas famílias, a nós e, sobretudo, a Deus.
*Psicóloga Clínica
Parabéns, Juliara!
Palestra muito esclarecedora!
Deus a abençoe!