Ambivalências e dilemas emergentes: a busca do maior bem possível
Dom Luiz Antonio Lopes Ricci
Bispo Auxiliar de Niterói
A vida sempre tem a primazia! Diante da atual pandemia, governantes e autoridades sanitárias do mundo todo fundamentam a difícil e complexa decisão de isolamento social coletivo pelos imperativos de “salvar vidas” e de “não colapsar o sistema público e privado de saúde”. Já no Antigo Testamento, temos um imperativo de Moisés ao povo, na travessia do deserto: “Escolhe, pois, a vida, para que vivas tu e tua descendência” (Dt 30,19). Estamos nesse momento de travessia e, não obstante os “efeitos colaterais” de tal escolha, precisamos fazer um pacto pela vida. Somos chamados ao “sacrifício”- deixar algo bom por algo melhor, visando o bem maior: “o que chamamos de amor é essencialmente respeito pela vida” (E. Schockenhoff). Aqui emerge o princípio da defesa da vida física: “refere-se ao respeito pela vida, à sua defesa e promoção e representa o primeiro imperativo ético do homem para consigo mesmo e para com os outros. A vida humana tem um valor em si mesma e por si mesma. E esse valor constitui a base para qualquer outro valor” (F. Correia).
Parece-nos oportuno recordar, para iluminar o discernimento pessoal e daqueles (as) que têm o poder de decisão, um princípio ético que pode ser perfeitamente aplicado ao dramático cenário atual. Princípios são regras gerais do agir e o objetivo destes é oferecer uma referência prática e conceitual àqueles (as) que devem tomar decisões nos diversos campos do agir humano. Cabe recordar que toda ação boa deve ter uma teoria que a fundamenta. Está em jogo a vida humana confiada à nossa responsabilidade e cuidados. O filósofo Kant assim se expressou: “Os pensamentos sem conteúdo são vazios, as intuições sem conceitos são cegas”.
Neste cenário complexo não há mais espaço para maniqueísmos e contraposições entre vida ou economia. O modo de pensar mais adequado é o multidisciplinar, que acolhe as inevitáveis ambivalências e dilemas, buscando o maior bem possível. Situação complexa não se resolve com medidas simples, tampouco com declarações inconsequentes, presunção, medidas isoladas e fechamento ao diálogo. A maioria dos casos não são preto ou branco, são cinzentos: preto e branco. Enquanto o maniqueísmo valoriza o “ou-ou”, o modelo dialógico privilegia o “e-e”. Esse modo de pensar e agir se aproxima daquilo que E. Mounier chamou de “otimismo dramático” que acolhe as tensões e busca superá-las com sabedoria e serenidade. No caso atual, precisamos especialmente de celeridade, para que as decisões cheguem aos destinatários, sobretudo aos pobres, desempregados, sem trabalho e sem moradia. Milhões de brasileiros (as), muitas vezes invisíveis para o Mercado e Estado agora se tornam visíveis. É hora de adotar, com urgência, iniciativas de transferência de renda, como alguns países já o fizeram, para amenizar os danos dessa crise mundial e garantir a sobrevivência dos pobres e empobrecidos.
Diante da recorrente afirmação de que “o remédio não pode ser pior que a doença”, o que fazer? Como salvar vidas sem prejudicar a economia, o emprego e a renda? Qualquer decisão terá um duplo efeito! Pessoas éticas e que buscam sempre o bem convivem, frequentemente, com dilemas éticos – situações embaraçosas com duas saídas difíceis e penosas, e com as ambivalências – coexistência de aspectos, sentimentos e resultados antagônicos. Na verdade, não há ação neutra! O discernimento ético é um imperativo na busca do maior bem possível e o princípio do duplo efeito pode nos ajudar na deliberação. Trata-se de uma ação que produz dois efeitos inseparáveis: um bom e outro nocivo. O primeiro resultado é legítimo e aquele que queremos atingir; o segundo é mau e não desejado, mas é inseparável do primeiro. Surge a questão agônica: devemos procurar o bem e tolerar o mal? Para lidar com este dilema foi formulado este princípio do duplo efeito. Ele nos permite realizar a ação boa que tem consequências más, desde que as quatro condições sejam, integralmente, respeitadas (Cf. L. Pessini – C. Barchifontaine, M. Faggioni):
- A) A ação em si não deve ser nociva; o ato deve ser bom. Afirma-se dessa forma o princípio ético fundamental de que não devemos fazer o mal;
- B) O mal não pode ser o meio para produzir um efeito bom. Este é o princípio ético tradicional: não podemos partir de um mal para se chegar a um bem;
- C) O efeito danoso não é desejado. A intenção do agente está somente voltada para o efeito bom, enquanto o efeito mau é somente tolerado ou permitido. A intenção primeira é atingir o efeito bom. Esta condição esclarece que podemos fazer o bem, mesmo prevendo que alguma consequência não desejada coincida ou seja posterior à ação;
- D) Deve existir uma proporção adequada entre efeito bom e efeito mau, uma razão proporcional para executar a ação apesar das consequências que ela traz. Quando colocado na balança o bem deve ser maior que o mal. Esta avaliação da proporcionalidade dos efeitos e valores em jogo abre um grande leque de problemas e dilemas, contudo deve ser feita se queremos proceder com responsabilidade e escolher a vida.
Acreditamos que este princípio ético, unido às orientações cientificamente fundamentadas, justifica o desejo de “salvar vidas” por meio do isolamento social coletivo e de outras amargas decisões do poder público e autoridades sanitárias. Estamos todos apreensivos diante do cenário de incertezas e preocupação. Como vamos superar as consequências negativas, já sentidas por todos e todas, sobretudo pelos mais pobres e necessitados? Mesmo diante de tal angústia, precisamos escolher a vida e garantir a justiça distributiva e a proteção social dos mais atingidos e vulnerados. Com boa vontade, bom senso, equilíbrio, diálogo e sabedoria vamos, a humanidade e nós, encontrar o melhor caminho… depois de uma escolha extrema, o natural é que, no momento certo, o pêndulo volte para o meio… e oxalá, para algo melhor do que antes. A orientação dada a Paulo é muito atual, para nós e para o poder público: “O que nos recomendaram foi somente que nos lembrássemos dos pobres. E isso procurei fazer sempre, com solicitude” (Gl 2, 10). O que podemos e devemos fazer?
+Dom Luiz Antonio Lopes Ricci
Bispo Auxiliar de Niterói