Educar: a Ação da Igreja e o seu Agir num Mundo de Analfabetos Funcionais em Compaixão

João Santiago – Professor Universitário

Duas são as necessidades humanas, sem as quais, não será possível falarmos sobre educação, amor, sabedoria, liberdade, libertação, utopia e fé: oportunidade e reconhecimento. Neste sentido, as Campanhas da Fraternidade vêm sendo, ano após ano, a maior oportunidade de educação do povo cristão, sobretudo o povo católico, durante este último meio século. Oportunidade que, embora real, teimosa e irreverente, é subaproveitada, subentendida e, grosso modo, podemos dizer, desperdiçada pela Igreja institucional clericalizada e que vive de costas para o sofrimento. Embora “permita” o pernoite desta indigente sob as soleiras de alguns de seus templos, desde que não atrapalhe o ritualismo esterilizante e alucinante que faz às pessoas dóceis à estética, e indiferentes com a ética. Já o reconhecimento não chega nem mesmo até as soleiras. É paradoxal e de difícil compreensão esta situação. 

Explico-me. A Conferência Nacional do Bispos do Brasil – CNBB (1952) -, é, talvez, a expressão mais forte na perspectiva teológico-profética da Igreja no Brasil. E tem um pouco mais de idade que as Campanhas da Fraternidade (1964) e talvez seja sua irmã mais velha. Eu, particularmente, prefiro vê-la como a sua mãe. Assim, em sintonia com a sua rebeldia cercada de causas legítimas, a CNBB se une à tantas outras meninas que a própria Igreja reconhece como mães precoces. Essa maternidade precoce ainda revelaria mais uma ação que liga a Igreja, esposa de Cristo, à Maria de Nazaré, Mãe de Deus e da Igreja. É a CNBB em forma de colegiado, quem pensa a CF, quem define os temas e quem a reconhece como Ação Evangelizadora e o faz como Igreja. É também a CNBB quem paga o preço profético por esta ousadia. Ofensas, ameaças e todo tipo de violências, vindas do que o néolinguismo pagão chama de “cidadãos de bem”.

A Campanha da Fraternidade de 2022, por sua vez, é a grande oportunidade para a educação da Igreja. Educar as suas ações, o seu agir no mundo. E o mais importante é que, embora seja uma exigência e ao mesmo tempo uma necessidade, aprender com as outras Igrejas e com as outras Religiões, assim como com toda a sociedade, a Igreja deve começar a aprender com ela mesma. Aprender com a sua própria história, com o acervo extraordinário de Seu Ensino Social, guardado e por vezes parece-nos, escondido, à sete chaves. A educação deve ser para a conversão, como o maior apelo, um quase clamor que já faz parte das narrativas das Campanhas da Fraternidade. Por isso, assim como o apelo à conversão, é, em primeiro lugar, para a Igreja, aqui vista como o clero, como em Puebla, o mesmo vale para a educação. Trago aqui o conceito de Conversão do Frei Carmelita Carlos Mesters, para quem Conversão é Conversa Grande! O clero precisa ser reeducado no sentido de não “infantilizar” o laicato e por vezes, tratá-lo como se este fosse incapaz, inapto e por índole, ignorante. Reeducar o clero para o serviço é o primeiro passo para a sua conversão. O laicato sabe fazer mais que tarefas, atividades braçais e obedecer e cumprir ordens. Embora grande parte dele não se sinta ainda com este direito. Nem saiba que o tem. 

 O Texto Base da CF-2022 nos conduz a um diálogo feito de escutas falantes com nós mesmos e com o mundo; como a uma visita de reconhecimento à algumas de nossas produções mais exemplares; com a mudança da mentalidade competitiva e dominante; com a oportunidade de reconhecermos tantas bonitezas que estão na nossa caminhada.  Aprender a fazer novas perguntas e a refazer antigas perguntas que embora, antigas, exigem novas respostas. Fechar os olhos até pode nos impedir de ver os verdadeiros problemas de nosso tempo, mas não os resolve. O professor Agenor Brighenti traz mais uma vez, uma importante e abrangente pesquisa que nos será de extrema utilidade. “Nas últimas décadas tem irrompido no seio do catolicismo brasileiro e para além dele um novo perfil de presbíteros, denominados “padres novos” que, por suas práticas pastorais e comportamentos pessoais têm promovido na esfera da experiência religiosa o deslocamento do profético para o terapêutico e do ético para o estético”. (BRIGHENTI, 2021). As implicações e as consequências deste deslocamento estão por todos os cantos. “Tendes olhos: não vedes?” (Mc 8,18). E quero crer, que ele seja fruto de uma “educação” específica. Que espécie de cristianismo teremos, sem profecia e sem ética?

Gosto de imaginar a Igreja como a desejou o Papa João XXIII, como Mãe e Mestra. Precisamos retomar esta ideia de Igreja. Temos esta oportunidade este ano. “Trata-se da doutrina da Igreja Católica e Apostólica, mãe e mestra de todas as gentes, cuja luz ilumina e abrasa, cuja voz, ao ensinar cheia de sabedoria celestial, pertence a todos os tempos, cuja virtude oferece sempre remédios eficazes, suscetíveis de trazerem soluções para as crescentes necessidades dos homens, para as angústias e aflições desta vida” (MM nº 256). A Teologia Pastoral precisa ser readmitida na Igreja, como a Teologia que educa para o serviço, para a conversão integral. Para a comunhão e para sinodalidade. Assim, a Teologia que reeducará a Igreja para ser discípula da Palavra; para a escuta dos gemidos da vida; para discernir antes de tomar decisões; para agir como Mãe e Mestra, já existe, mas não pode ainda existir. Encontra-se refugiada em algum Egito por aí. 

Uma orientação importante que se faz uma exigência, diante da realidade que grita e nos espreita, é não olharmos para o Texto Base da CF-2022 simplesmente, mas, olharmos através dele e de suas lentes multifocais, para a realidade e para as possibilidades e oportunidades de superação das contradições e dos paradoxos que nos comprimem uns contra os outros. Olhar para Jesus pregado na cruz tem naturalizado a cruz como forma de resignação e castigo para esse povo indolente e de pouca fé. Olhar para o santíssimo tem resumido a fé a inclinar piedosamente o pescoço e a revirar os olhos levando por vezes ao delírio coletivo. Reeducar a fé é aprender a olhar a partir da cruz, a partir da morte e não para a cruz ou para a morte. Olhar para a morte é querer ver um morto. Olhar a partir da morte é buscar a ressurreição que mora do outro lado da rua. A Educação como Sabedoria e Ato de Amor, como aliás, já nos ensinaram Paulo Freire, Álvaro Vieira Pinto, Dom Hélder Câmara, Desmond Tutu e Malala Yousafzai, deve nos levar a querer ver tudo de frente. Pois, de acordo com o Papa Francisco, “Estes são sintomas de uma sociedade enferma, pois procura construir-se de costas para o sofrimento”. (FT nº 65).

As escolhas se sucedem e se multiplicam. Porém, nós não podemos nos iludir, e devemos aceitar que poderemos escolher entre uma educação que ensina a ser fraterno, Educar para a Fraternidade e outra “educação” que ensina a ser egoísta. Educar para se dar bem, para o egoísmo. A segunda possibilidade, que existe, é real, é uma opção pela falta de educação. É a não educação. Vejam: educar a ação. Sabem o que significa? Educação transformadora. Que muda o paradigma; que muda a mentalidade; que muda a atitude. E tudo isso, muda o mundo. Vejam ainda: Deus não pergunta se você é cientista ou se é pastor, padre ou bispo, ou se é teólogo. A terra quando nos acolhe no nosso retorno a ela, não nos pergunta se somos cientistas, teólogos, religiosos ou héteros.  

A CF-2022 nos trouxe a oportunidade para revermos o conceito de educação da Igreja. Sobretudo, para atualizarmos os métodos e a didática. Vamos conversar sobre Educação na Fé? Sobre investimento em educação na Igreja? Quanto que a Diocese, a Arquidiocese, ou a Província investem por ano na formação do laicato? Ah, mas isso é difícil! Eu sei. Então, quanto que a Paróquia investe por ano na formação bíblica, teológica, ecológica e na saúde do laicato? Ah, mas isso também é difícil! Eu também sei disso. Então, quanto que a Paróquia investe por ano na formação das lideranças pastorais? Coordenadores, catequistas, líderes comunitários, ministros; os próprios assessores das Campanhas da Fraternidade, que tipo de investimento em sua formação, ou mesmo de incentivo eles recebem? Somos a Igreja, ou somos da Igreja? Será que ainda estamos vivendo uma realidade Pré-Concílio Vaticano II em que o povo é educado nas missas, através dos sermões? Ou, quem sabe anterior à RerumNovarum? Onde os trabalhadores são educados no trabalho? Só para que conste, “Se, pois, os interesses gerais, ou o interesse de uma classe em particular, se encontram lesados ou simplesmente ameaçados, e se não for possível remediar ou prevenir isso de outro modo, é indispensável recorrer à autoridade pública”. (RN nº 21).  A quem deverá recorrer o laicato?

“Educar é um ato eminentemente humano”, diz o Texto Base da CF deste ano. E segue, “A Bíblia nos mostra a história de um Deus que educa o povo, caminhando com ele, compreendendo suas fragilidades, respeitando suas etapas e alertando diante dos erros”. Vamos pensar sobre estes verbos? Educar, caminhar, compreender, respeitar, alertar. Nós não podemos perder a oportunidade de rever os Textos Bases das outras duas Campanhas da Fraternidade que trataram da Educação (1982 e 1998). Vejam, o que diz o Texto Base deste ano, “O mundo de nosso tempo precisa encontrar caminhos para se reconstruir, ouvindo os clamores dos vulneráveis em sua casa comum cada vez mais vulnerabilizada”. (TB, CF-2022, p.1). Como devemos agir, como Igreja, como povo de Deus, diante de tantas demonstrações de indiferença, de falta de educação, sobretudo ecológica, ambiental e diante de tantas intolerâncias que se materializam em forma de violência? O que dizer para o Padre que celebra com a comunidade, como um de seus principais feitos na paróquia, o corte das árvores que atrapalhavam a vista da Igreja, dos transeuntes e dos motoristas que passam na rua? É preciso mudar a mentalidade tacanha de que tem um parque atrapalhando a estrada? Não é uma estrada que atrapalha e corta o parque? Quem chegou primeiro, a árvore ou o prédio da Igreja? 

Voltemos à ideia rica e bonita de Mãe. A Igreja como Mãe e Educadora na Fé. Mas vamos refletir sobre os fundamentos do ato de educar! Vamos alargar os horizontes de nossos pensamentos, mudar a nossa mentalidade colonialista dos Evangelhos que só cabe numa perspectiva imperialista de cristianismo, em que alguns iluminados dentro de suas roupas espetaculosas e sentados em seus tronos, com suas vozes ameaçadoras, pois vezes falsamente adocicadas, podem, sabem e decidem o que é melhor ou bom. E outros, as maiorias, ignorantes por natureza e apenas úteis, devem obedecer e aceitar tudo. Precisamos como, diz o Concílio Vaticano II, “Facilitar o Juízo da Igreja”. Quanto mais a verdade revelada for difundida e chegar a mais pessoas, mais seremos Igreja. “Nesse sentido, a Igreja é verdadeiramente mãe, a nossa mãe Igreja – é bonito dizê-lo assim: a nossa mãe Igreja – uma mãe que nos dá vida em Cristo e que nos faz viver com todos os outros irmãos na comunhão do Espírito Santo”. (FRANCISCO, 2015, p.65). Eu prefiro, a exemplo da CNBB e do Papa Francisco, e felizmente de Dom José Peruzzo, fazer de tudo para ficar com aqueles que Jesus preferiu ficar. Os fracos…

Os movimentos mais reacionários costumam ser os mais intolerantes e os mais violentos, isso não é apenas no interior da Igreja. Acontece assim em toda a sociedade. No entanto, por mais que os movimentos reacionários sejam violentos sejam nefastos e perigosos, até porque têm dinheiro e estrutura de apoio, coisas que as pastorais, e a CF, por exemplo não têm, o grande entrave para a conversão da Igreja são os grupos adeptos do pietismo ativo. Estes, embora neguem a política e se digam apolíticos, são financiados direta e indiretamente por grupos corruptos de direita que se dizem católicos e estão infiltrados em todas as paróquias. Se dizem como portadores das melhores entre as “boas intenções” e fazem o papel dos “escribas e fariseus hipócritas, trancam a entrada do Reino, não entram e não deixam entrar nele os que desejariam”. (cf. Mt 23,13). É difícil, frequentemente impossível iniciar-se um curso de formação bíblica ou teológica nas paróquias porque eles não deixam. Porém, jamais se expõem, jamais aparecem, não entram em confronto direto com ninguém. Não têm diálogo. Quando não conseguem fazer o destrabalho sozinhos, na surdina, geralmente o padre faz para eles, pois são ótimos bajuladores. O que fazer quando o padre diz repetidas vezes que política não é coisa de Deus, mas é coisa do diabo? A serviço de quem, além do próprio diabo, está esse discurso? Como educar com sabedoria e com amor, negando a política, ou melhor, demonizando-a?   

A Educação que fala com Sabedoria e Ensina com Amor, precisará ser precedida por um exorcismo necessário. “Por isso, em continuidade à sua obra salvífica, Cristo deu aos discípulos poder sobre os demônios (Mc 10,1; Mc 6,7; Lc 9,1), e eles ordenavam que o demônio deixasse a pessoa, em nome de Jesus (Mc 7,22; 9,38-39)”. (CNBB, doc. 9, p. 30). A maldição que nos abateu e nos trouxe as mais cruéis desgraças através de mentiras maquiadas de Fake News, que ninguém sabia o que era; sustentadas por um negacionismo ativista e demoníaco; que deu voz e vez a uma legião de analfabetos teológicos, alienados que veem o diabo em todos os lugares, menos aonde ele realmente estar. Inclusive, ás vezes, dentro deles mesmos. 

Essa gente fez grupos de oração; terços, novenas, cercos de Jericó, e sabe lá Deus o que mais, tudo dentro da Igreja, em nome Deus, da pátria e da família. As perguntas que uma Educação que fala com Sabedoria e Ensina com Amor, deve fazer é: que Deus? Que pátria? Que família? Neste sentido, precisamos trazer à luz o legado de Educadores como João Batista Libânio que define a Igreja e a pastoral com sabedoria e amor. “Pastoral é o agir da Igreja no mundo. Definição clara. Num primeiro momento parece que já disse tudo. Os três termos fundamentais excelem em nitidez conceitual. Igreja – Agir – Mundo. Entretanto, parando um pouquinho, pergunto-me: mas que Igreja? Que tipo de agir? E que mundo?” (LIBANIO, 1982, p. 11). Vamos parar também nós um pouquinho antes de começar a próxima Campanha da Fraternidade? Sabem por quê? “Permanece, porém, uma batalha contra o poder das trevas que atravessa toda a história. Inserido nessa luta, o ser humano deve combater constantemente, se quer ser fiel ao bem”. (CNBB, doc. 9, p. 37). 

As Campanhas da Fraternidade são cada vez mais importantes e necessárias. Você que está lendo este texto ou que tem acesso aos chamados, onde quer que você esteja, venha juntar-se a nós. Juntos, juntas somos mais Igreja e mais fortes. A gente vai precisar muito uns dos outros, porque, nestes tempos de negacionismo, de Fake News e duros golpes contra a Igreja Povo de Deus, a Fé, a Democracia, os Direitos Humanos e a Vida, a realidade narrada por Jesus através da comunidade de Mateus, mantêm-se atualizada. “Eis que vos envio como ovelhas para o meio de lobos; sede, pois, astutos como as serpentes e simples como as pombas”. (Mt 10,16). Trago-lhes uma palavra de salavação, frente à estas realidades. “O Senhor deixou-nos bem claro que a santidade não se pode compreender nem viver prescindindo destas suas exigências, porque “a misericórdia é o coração pulsante do Evangelho””. (GE nº 97). 

Temos um itinerário que se faz não apenas necessário, mas urgente acontecer na Igreja. A reeducação do clero que o faça sentir-se passível de conversão e reconheça-se como seres inconclusos e inacabados como todo mundo; iniciar-se um processo educativo do laicato, com investimento financeiro decente, com metodologia apropriada, com diretrizes, objetivos e espiritualidade cristãs; fazer uma apresentação de duas irmãs desconhecidas na Igreja: a democracia e a comunhão; resgatar a dignidade do batismo e o primado da Palavra; desenvolver um projeto inteligente e apropriado para e com os jovens, para e com os adolescentes, para e com as crianças; fazer valer o que diz o salmo do Padre Zezinho, que diz, “Somos a Igreja do pão, do pão repartido do abraço e da paz”. Estou absolutamente convencido de que, se as pessoas aprendem a ser fundamentalistas, deterministas e proselitistas, elas podem aprender a ser cristãs. A Educação é um ato de amor e aprender é uma condição humana. Se a Igreja não elaborar um projeto de Educação que nos ensine a amar e a sermos misericordiosos, o inimigo já tem a sua estratégia, que aliás, vem dando certo. Retomo aqui mais um dos salmos do Padre Zezinho que diz, “Eu, porém, sou batizado, não vou mais ficar calado”. 

Por fim, educar para a fraternidade, para a solidariedade e para a liberdade, significa romper algumas barreiras ainda intransponíveis nos ambientes eclesiais. Por exemplo, romper com a barreira do clericalismo que faz do clero o único meio de informação e de formação na fé; como as coisas não acontecem automaticamente, urge uma atualização teológica e pastoral do clero que o retire do conveniente espaço de coach, fazendo coaching religioso e da areia movediça do estético e lhe reconduza às rodas de conversa, aos círculos bíblicos e às periferias, geográficas e existenciais. Temos a oportunidade para reconhecermos tanta sabedoria que a vida nos traz e como Paulo Freire, à moda grega, retomarmos a educação como Paidéia. Esta é uma visão grega de educação que tinha como objetivo formar um ser humano completo, integral, cuidando de seus múltiplos aspectos. Formar seres sábios, saudáveis, capazes de se autogovernar e de governar, impactando positivamente a sociedade que vive. Educação como um ato de amor, como diria Paulo Freire, se dá em mutirão. Os homens e as mulheres são educados e educadas em comunhão, entre eles e com o mundo.

João Ferreira Santiago é coordenador do Curso de Teologia da Faculdade Unina, Doutorando em Teologia pela PUC-PR.

Fonte: www.portaldascebs.org.br

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