Mística do Cuidado

Dom Luiz Antonio Lopes Ricci

Bispo Auxiliar de Nitterói (RJ)

Conscientizar, à luz da Palavra de Deus, para o sentido da vida como Dom e Compromisso, que se traduz em relações de mútuo cuidado entre as pessoas, na família, na comunidade, na sociedade e no planeta, nossa Casa Comum” (Objetivo Geral da CF 2020).

Iniciaremos no final deste mês o profícuo e transformador Tempo da Quaresma, durante o qual se desenvolve a Campanha da Fraternidade, com o lema “viu, sentiu compaixão e cuidou dele” (Lc 10, 33-34). Como cuidadores da vida, urge refletir sobre os fundamentos do cuidar, à luz da antropologia e mística cristãs.

Para o cristão, o cuidado adquire status de virtude e de resposta livre ao chamado do Mestre do cuidado, que vai ao encontro para cuidar. O cuidado é expressão do afeto e consequência do amor. Amar é cuidar! Contudo, cuidar exige tempo. A arte de cuidar é a arte de doar o tempo, de estar junto, de estabelecer relações pautadas pelo afeto e solidariedade. Sem o tempo, doado com amor e alegria, não se estabelece a “proximidade com o próximo” (Papa Francisco). O tempo é garantia de uma presença continuada e eficaz. É um tempo partilhado com generosidade e afeto.  Emerge aqui a virtude da disponibilidade bastante difusa entre os fiéis cristãos leigos (as).  As pessoas sempre respondem, positivamente, quando são chamadas, de modo correto, para executar um serviço relevante. Servir à vida, por Amor a Cristo, é sempre um chamado carregado de significados e extremamente envolvente, fascinante e gratificante.

O cuidado, aqui entendido como expressão de afeto, produz estabilidade e perseverança. Quem cuida cativa e é cativado. Criam-se laços de afeto e consequente aumento de responsabilidade. O afeto é sempre cuidador, curativo e transformador.  Dá origem e sustenta a mística do cuidado, que se concretiza nas relações pautadas pela solidariedade concreta. Sem afeto e cuidado, a vida não sobrevive. O destinatário do cuidado cristão é um “tu”, não alguém, ou qualquer um. O cuidado coloca o outro no coração do cuidador.

A arte de cuidar pode ser uma inclinação natural ou provocada, com dois sentidos distintos: natural e ético. O natural é aquele sem nenhum tipo de mediação, uma espécie de inclinação natural, o cuidado da mãe, por exemplo. Já no cuidado ético, a pessoa prestadora de cuidado encontra suas raízes e motivações na recordação de ter sido objeto de cuidados por parte dos outros.  Uma espécie de retribuição, uma resposta generosa e agradecida por ter sido cuidado (Cf. V. Mele). “Quando não temos cuidado perdemos o nosso ser; e o cuidado é a via de retorno ao ser” (V. Mele). Por isso, o cuidado é extremamente gratificante e benéfico para o cuidador. Nesse caso, o dar-se é também um curar-se. “Tampouco devemos ignorar as feridas não curadas dentro de nós mesmos: quando admitimos sua existência e buscamos sua cura, também contribuímos para a cura do mundo” (T. Halík). Além desses dois sentidos, temos o cuidado cristão, que emerge da Fé em Jesus Cristo, que nos envia para anunciar, ter compaixão e cuidar por Amor a Ele e com amor.

Tanto o destinatário da ação, geralmente ferido e atingido por situações difíceis e adversas, quanto o cuidador, devem preservar a capacidade de serem afetados e cuidados, através da permeabilidade e docilidade recíprocas. A Primeira Carta de Pedro oferece um fundamento bíblico-teológico para a Mística do cuidado: “Coloquem nas mãos de Deus qualquer preocupação, pois é Ele quem cuida de vocês” (1 Pd 5,7). Também a Parábola do Bom Pastor e a do Bom Samaritano, desenvolvida no Texto Base da CF 2020 são, significativamente, inspiradoras. Textos que revelam o cuidado de Deus e a resposta do homem a esse cuidado. Por essa razão, à luz da fé em Cristo, o cuidado se transforma em mística do cuidado, por ser uma resposta de amor ao Amor recebido.

O paradigma do cuidado é o caminho para se evitar a negligência e resgatar a responsabilidade pessoal e social pela vida. Logo, a arte de cuidar deve ser também crítica, ou seja, ajudar o destinatário e o cuidador a descobrirem quais são as necessidades reais e emergentes e quais os meios para superá-las.  Assim, o cuidado (to care) pode curar (to cure) tanto a pessoa  quanto a sociedade. A mística do cuidado é comportamento ativo, atitude permanente, compreendida na ordem do ser e do fazer. Cuidar por amor! É o afeto em ação. O cuidado é afetivo e efetivo. “Sentimos como a Esperança começa a transformar-se em Utopia, uma concentração de esperanças que querem tornar-se realidade” (Dom Paulo E. Arns). É a esperança cristã a fonte da utopia e não o contrário. A mística do cuidado desperta novas iniciativas em favor da vida e potencializa as já operantes e, consequentemente, contribui para a cultura da vida, ou melhor, a cultura do cuidado com a vida.

A situação socioeconômica injusta continua sacrificando os empobrecidos, com um preço altíssimo em termos de vida humana. Aqui emerge o imperativo cristão de evitar o mal. Não se pode justificar ou legitimar a pobreza a partir da constatação de que os pobres, não obstante a escassez ou falta do necessário, são capazes de viver com alegria, solidariedade e fé invencível, fato inegável e fácil de ser observado entre muitos. Contudo, não obstante a presença dos valores do Reino de Deus entre os pobres, deve-se pensar naqueles que não tiveram ou não terão a chance de sobreviver para poder viver com estas mesmas atitudes. Pensamos na vida abreviada e morte antecipada que não terá a chance de ser manifestação do Reino de Deus. “Eu te louvo, Pai, Senhor do céu e da terra, porque escondeste essas coisas aos sábios e inteligentes e as revelaste aos pequeninos” (Mt, 11,25). Trata-se de colaborar primeiramente para garantir a vida e depois para promovê-la por meio das mudanças estruturais e comportamentais. Fala-se muito sobre a morte digna e o morrer com dignidade. Contudo, demasiado pouco sobre o viver com dignidade. Há pessoas que combatem a vida toda contra a morte, uma espécie de desejo de imortalidade, mas não são capazes de viver na perspectiva da eubiosia (bem viver), do dom e da biofilia (amor à vida). Vive-se para não morrer e não para viver ou para que o outro viva com dignidade.

Quem vive de modo autenticamente cristão concretiza em si a vocação inata de toda pessoa humana: cuidar da vida e da criação. “Aquilo que torna humano o viver do homem é justamente este interesse pela vida que nós chamamos amor” (J. Moltmann) Certamente, a mística do cuidado, por ser extremamente terapêutica e transformadora, impedirá a metástase das situações produtoras de mortes precoces e evitáveis (mistanásia). Se o mal “é a privação de um bem devido” (S.T. de Aquino) e o bem “é aquilo a que todas as coisas tendem” (Aristóteles) e se “a vida humana é sempre um bem” (S. J. Paulo II), parece correto inferir que toda boa ação, motivada por uma mística cristã subjacente que visa a defesa e promoção da vida, realiza o bem possível, contribui para diminuir a potência do mal, garante a futuridade (conservação) da vida, destinada ao encontro com o Sumo Bem e origem de todo bem: Deus. Não basta, portanto, ver e sentir compaixão, é necessário, sobretudo, cuidar! Imitemos o Bom Samaritano, que é também Jesus, vamos cuidar do ferido, que é também Jesus e vamos acolher com docilidade e generosidade o seu imperativo: “vá e faça o mesmo” (Lc 10, 37), torne-se mais próximo de seu próximo, sobretudo dos que precisam de sua ajuda e proximidade.

Profícuo e Sereno Tempo de Quaresma! Com gratidão e bênção,

+ Dom Luiz Antonio Lopes Ricci

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