Paradoxal realeza
Geraldo De Mori,- Religioso Jesuíta
“Então o Rei dirá aos que estiveram à sua direita: Vinde benditos de meu Pai! Recebei em herança o Reino que meu Pai vos preparou desde a criação do mundo…” (Mt 2535).
O ciclo litúrgico da Igreja católica termina com a festa de Cristo Rei do universo. Embora a realeza seja minoritária no mundo atual, durante séculos ela foi a forma de governo de muitos povos e nações. Também no seio do povo eleito, segundo o livro de Samuel (1Sm 8), ela foi instituída, inicialmente a contragosto do profeta, para o qual, fiel à experiência fundante de Israel, Deus era o único rei. Apesar de certo “fracasso” na primeira tentativa, com Saul, a unção de Davi como rei tornou-o o modelo ideal a partir do qual a realeza foi vista no seio do povo de Deus, com muitas decepções, mas enquanto figura, o rei era visto como “ungido” (messias) de Deus, e por isso mesmo, aquele que deveria encarnar o cuidado do próprio Deus para com seu povo, sobretudo para com os que, em seu seio, eram os mais vulneráveis: viúvas, órfãos e estrangeiros. A queda do reino de Israel, com o exílio a Nínive, e do reino de Judá, com o exílio para a Babilônia, e a transformação do país em colônia das grandes potências coloniais (Babilônia, Pérsia, Grécia, Roma), foi ao mesmo tempo frustrando a esperança da restauração do reinado de Deus, mas também alimentando-a, “contra toda esperança”.
O discurso inaugural de Jesus, segundo o evangelho de Marcos, revisita esta capacidade infinita de espera em Israel: “cumpriu-se o tempo, e está próximo o reino de Deus” (Mc 1,15). Sua ação levantou no meio de seus seguidores e das multidões a expectativa de que ele seria o messias enviado por Deus, mas, como ele diz a Pilatos, o seu reino “não é deste mundo” (Jo 18,36). Isso não significa que sua pregação e ação não tivessem nada a ver com o que acontecia na história de Israel ou com a história do mundo. Pelo contrário, sua pregação era um convite claro a uma conversão que implicaria em mudanças com consequências importantes na vida das pessoas: curas, exorcismos, acolhida dos pecadores. A cura alivia a dor e a angústia que ela desperta. A expulsão de satanás indica que seu reinado não é absoluto, que é possível combatê-lo. A acolhida de pecadores, expressa nas refeições que partilhava com eles, indica que o reinado de Deus emerge transformando relações, dando lugar nas mesas a quem não tinha direito, seja porque de fato eram culpados, seja porque eram vistos como culpados.
Em sua entrada em Jerusalém Jesus é aclamado rei, Filho de Davi, o rei mais querido na história do povo eleito. Mas seu reinado, que “não é deste mundo”, possui uma outra lógica que a lógica experimentada pelo povo de Israel em sua história. Essa lógica é curiosamente recolhida nos três evangelhos escolhidos pela liturgia da Igreja para celebrar esta festa. No evangelho do Ano A, por exemplo (Mt 25, 31-46), o texto escolhido é o do juízo final, no qual o Filho do Homem, quando vier em sua glória, se assenta num “trono glorioso” como juiz universal, separando as pessoas de todas as nações, colocando de um lado as “ovelhas” e do outro os “cabritos”. Aos primeiros dirá: “Vinde, benditos de meu Pai! Recebei em herança o Reino que meu Pai vos preparou desde a criação do mundo” (Mt 25,34). A razão deste convite é que os que comporão esse grupo deram comida, água e roupa a quem estava com fome, com sede ou nu, acolheram o estrangeiro, visitaram os que estavam doentes ou na prisão. Os que não foram capazes de realizar esses gestos diante dessas situações, os que estarão do lado dos cabritos, serão condenados ao “castigo eterno”, enquanto os justos irão para a vida eterna (Mt 25,46). No Ano B (Jo 18,33b-37), o texto joanino proposto, traz o episódio do julgamento de Jesus diante de Pilatos, que lhe pergunta se ele é o rei dos judeus, à qual Jesus responde: “Dizes isso por ti mesmo ou outros te disseram isso de mim?” (Jo 18,34). Pilatos recorda que ele não é judeu e que o povo e os chefes o entregaram para que ele fosse julgado. Jesus então lhe responde que seu reino não é deste mundo. Pilatos lhe pergunta de novo, “então és rei?” e Jesus lhe diz “Tu o dizes, que eu sou rei. Eu nasci e vim ao mundo para isto: para dar testemunho da verdade. Todo o que é da verdade, escuta a minha voz” (Jo 18,37). Portanto, o rei segundo o evangelho joanino é Jesus portador da verdade. No evangelho do Ano C (Lc 23,35-43), o episódio proposto é o do escárnio dos soldados, que, após oferecerem ao crucificado vinagre dizem “Se és o rei dos Judeus, salva-te a ti mesmo” (Lc 23,37). O texto ainda lembra que acima da cabeça do crucificado estava a inscrição “Este é o rei dos Judeus” (Lc 23,38), terminando com a demanda do “bom ladrão”, “lembra-te de mim, quando entrares no teu reino” (Lc 23,42).
A festa de Jesus Cristo Rei do Universo foi instituída por Pio XI em 1925, ocasião em que se comemoravam os 1600 anos do Concílio de Niceia, que havia declarado a “divindade do Filho” como dogma de fé. Segundo o Papa, essa declaração apontava também para a realeza de Cristo, que merecia ser celebrada com uma festa solene. O sentido profundo desta realeza, segundo os textos propostos pela liturgia, não é o de uma identificação de Cristo com as realezas presentes na história e ainda hoje em alguns países. Trata-se de uma realeza que identifica em cada rosto maltratado ou submetido a todo tipo de humilhação a própria figura do humilhado da cruz do Gólgota. E nessa figura encontra-se, segundo a afirmação paradoxal do evangelho joanino, “o humano” (Ecce homo, Jo 19,5). Certamente é um rosto desfigurado, como os rostos dos humilhados da parábola do evangelho de Mateus, famintos, sedentos, nus, peregrinos, aprisionados, enfermos. Onde há atentado à dignidade humana, esse rosto recorda a solidariedade do “rei” eterno com os que dela são privados, mas também, os gestos de reconhecimento, feitos pela acolhida, serviço, solidariedade, caridade, defesa. O rei exaltado é o que define que a verdade que ele mesmo encarna é justamente a verdade que consegue ver naquilo que lhe é oposto, a humilhação, a imagem divina esmagada e necessitada de ser resgatada. Nesse sentido, o rei dos judeus, não é aquele que quer salvar-se a si mesmo, mas que aceita perder-se para salvar os condenados, levando-os ao “paraíso”, ou seja, ao “seu reino”, mostrando-lhes que por pior que sejam ou que tenham sido seus crimes, Deus sempre está disposto a acolhê-los, pois não quer que ninguém se perca (Mt 18,14).
Celebrar Jesus Cristo Rei do Universo, por mais que possa remeter a glória e a brilho, na verdade é lembrar que sua realeza passa pela humilhação, e que na vida de quem a acolhe ela deve traduzir-se em serviço, compaixão, solidariedade com todos os tipos de situações em que há atentado ao humano e à sua dignidade, ou seja, a tudo aquilo que não é realeza, e que a tradição teológica identificou como “imagem divina” no humano. Jesus é a imagem verdadeira da humanidade mais plenificada, que não só quer restaurar em cada rosto desfigurado esta imagem, mas indica o caminho a partir do qual seus discípulos e discípulas devem pensar a própria realeza. De fato, tudo o que se diz dele em sua humanidade se deve dizer dos que a partir dele compreendem suas próprias vidas. Nesse sentido, ser conformado e configurado à sua imagem é ser capaz de revestir-se desta realeza paradoxal, que mais que “pompas e circunstâncias”, reveste-se de seu manto de servidor, que lava os pés do humano ferido, resgatando sua realeza escondida nas humilhações da vida, ou desfigurada pelas injustiças inúmeras da história.
Geraldo De Mori, SJ é professor e pesquisador no departamento de Teologia da FAJE