Redenção e Plenitude
Geraldo De Mori – Religioso Jesuíta
“Quando chegou a plenitude do tempo, Deus enviou seu Filho, nascido de mulher” (Gl 4,4).
No imaginário forjado ao longo dos séculos pelo cristianismo, a festa do Natal tem uma importância tão grande que parece suplantar o evento fundador da fé cristã: a morte e a ressurreição de Jesus de Nazaré. Esse deslocamento já se encontra nos autores dos textos do Novo Testamento que, começando com o querigma, que é o anúncio de que o Deus anunciado por Jesus o havia ressuscitado dos mortos, aos poucos sentiram a necessidade de contar a vida pública do Nazareno, seus ensinamentos e seus gestos, através dos quais o Reino de Deus que ele anunciava próximo, se tornava realidade. No período mais tardio da redação dos evangelhos, alguns autores quiseram mostrar que Deus não só havia conferido o “Senhorio” a Jesus, confessado como Messias, Senhor, Filho do Homem e Filho de Deus, e que esse senhorio já se manifestava na “autoridade” com que ele anunciava a vinda do Reino e o tornava presente, mas que ele “vinha de Deus”, que tinha sido “concebido pela ação do Espírito Santo” no seio de Maria, que era a Palavra eterna do Pai feita carne e se tornara sua morada no mundo.
Do anúncio da Páscoa, que é a expressão do “fim” dos tempos, se vai ao anúncio dos anjos na gruta de Belém, que sinaliza a origem daquele que é o amém de Deus para a humanidade e o amém da humanidade para Deus (2Cor 1,20). Esse caminho, já traçado no conjunto dos escritos neotestamentários, conhecerá uma longa elaboração na história da teologia, culminando nas declarações dogmáticas dos sete primeiros concílios da Igreja na antiguidade, nos quais o “mistério” cristológico é aprofundado em sua identidade divino-humana e em sua identidade humano-divina. O caminho doutrinal, que busca dizer “quem” é Jesus, tinha como referência os dois momentos temporais estabelecidos por sua paixão-ressurreição e por sua concepção-nascimento. Ele era indissociável da pergunta sobre seu significado para o ser humano. No Novo Testamento essa pergunta também já está traçada em seus contornos principais, como o mostram os títulos que as comunidades atribuíram ao Nazareno. De fato, a confissão de Jesus como o Cristo recolhe a esperança de Israel e do judaísmo, tal qual emergiu no Antigo Testamento. Sua confissão como Senhor, além de também recolher convicções da fé do povo eleito, já ampliava essa convicção, pois o termo Senhor tem alcance mais universal, como também os títulos Filho do Homem e Filho de Deus. A ampliação do significado de Jesus é evocada nos textos da liturgia que preparam o Natal. Mateus, por exemplo, remonta a genealogia de Jesus a Abraão (o pai do povo eleito). Lucas, por sua vez, já a remete a Adão (o pai da humanidade) e João evoca a Palavra (Verbo), pela qual tudo o que existe foi criado, conforme aparece no primeiro capítulo do livro do Gênesis.
Esse percurso pelos “títulos” atribuídos a Jesus, que mostram seu significado para Israel, para a humanidade e para a criação, é enriquecido no Novo Testamento com um conjunto de expressões que buscam dizer o que de bom Deus dá através dele. Em geral, o termo “salvação” é o que expressa o significado mais radical do que é dado por ele e através dele. A maioria dos que acreditam em Cristo como salvador, associam a salvação ao perdão dos pecados. Essa perspectiva, que é predominante no imaginário e na experiência espiritual da maioria dos cristãos, enfatiza o que no humano e na criatura é da ordem da finitude e da falibilidade. De fato, tudo o que é vivo nasce, cresce, se reproduz e morre. Muitos animais parecem intuir a própria morte, mas nenhum se coloca questões tão radicais diante da própria morte, do envelhecimento, da dor e da enfermidade, como o ser humano. Muitas pessoas buscam a Deus e ao Cristo como aqueles que superam a finitude, a morte e o sofrimento. De fato, muitos dos gestos de Jesus expressam a oferta da salvação como saúde e vitória sobre o que ameaça a vida.
Mas, além da finitude, o ser humano é visto na bíblia como responsável por seus atos. Ele é criado livre por Deus, que lhe oferece um caminho de aliança, no qual ele poderá encontrar sua plenitude. Porém, diante da tentação, ele sucumbe, acreditando mais na serpente do que na palavra divina, como aparece no capítulo 3 do Gênesis. A ruptura com Deus incide em suas relações com o outro, como mostra a acusação que Adão faz a Eva no mesmo capítulo 3 do Gênesis, e na relação com o irmão, como mostra o capítulo 4 do mesmo livro, no qual o irmão mata o irmão, sem contar as rupturas que incidem na própria natureza, como atestam os episódios que narram o dilúvio (Gn 6-8).
A salvação trazida pelo Cristo engloba, nessa primeira perspectiva, a finitude e o pecado. Santo Anselmo da Cantuária, no século XI, na obra, Por que Deus se encarnou?, recolhe essas duas experiências humanas e associa a encarnação ao problema do pecado. Segundo ele, o pecado de Adão ofendeu de tal modo a honra divina que somente um Deus-Homem poderia repará-la, oferecendo o verdadeiro sacrifício de satisfação pelo pecado de Adão e pelos pecados da humanidade. Esse tipo de leitura corresponde certamente ao que Paulo, na carta aos Romanos, constatava: todos, de alguma maneira, são afetados pelo pecado, cometendo-os como Adão, ou sendo impelidos a cometê-los, necessitando da graça de Cristo para vencê-los (Rm 3,23; 5,20).
Mas o mistério do Natal, tal qual foi compreendido nos textos do Novo Testamento e no conjunto da doutrina cristã, não está associado apenas à ideia da finitude e do pecado. O próprio Paulo, no capítulo 4 da carta aos Gálatas, recorda que a Lei divina, que era o caminho que apontava como ser fiel à aliança, tinha apenas o papel de pedagogo. Segundo ele, “quando chegou a plenitude do tempo, Deus enviou seu Filho, nascido de mulher” (Gl 4,4), ou seja, em Jesus aparece não só aquele que “repara” ou “redime” o pecado do Primeiro Adão, mas aquele que leva o plano divino, já presente na criação adâmica, à sua plenitude. Nesse sentido, o que diz a carta aos Hebreus sobre Jesus como aquele que é o “inaugurador da fé”, aquele que a “leva à sua perfeição” (Hb 12,2), indica bem o que é a plenitude para a qual Adão foi criado e que encontra no Novo Adão sua plena realização. Trata-se, na verdade, de viver a experiência de ser Filho/a. Não por acaso, Jesus chamava Deus de Abba (Pai), e ensinou seus discípulos o Pai Nosso.
A tradição das Igrejas do Oriente deu muita importância a essa perspectiva através da teologia da divinização, segundo a qual Jesus se tornou humano para ensinar o ser humano tornar-se divino. Alguns intérpretes dessa tradição hoje afirmam que na verdade Deus se encarnou para que o ser humano aprendesse a ser verdadeiramente humano, pois a verdadeira humanidade é a que se revelou no jeito de ser do Nazareno.
A recordação dessas duas dimensões do que se contempla no Presépio deve ser valorizada. Em Jesus aparece o caminho da vitória sobre o pecado e o mal presente no mundo. Sua fé em um Deus que é Pai, é a via que mostra como vencer o pecado do mundo e o pecado em cada coração humano. Mas ele não é só redentor de um humano finito, falido e falível, mas aquele que aponta a plenitude que pode surgir do coração e dos gestos humanos quando atravessados pela experiência de ser filho/a como ele foi.
Geraldo De Mori SJ é professor e pesquisador no departamento de Teologia da FAJE