Ainda e sempre, a esperança
Evaldo A. D´Assumpção Médico e Escritor
A Carta Encíclica SPE SALVI (A esperança na salvação), do Papa Bento XVI, publicada em 2007, continua sendo uma leitura obrigatória para todos os cristãos e, por que não, também para os não cristãos. Afinal, o tema abordado diz respeito a todas as pessoas, especialmente nesses dias em que o ateísmo militante se manifesta ruidosamente, proclamando-se como a salvação da humanidade. É também um tema essencial quando o vertiginoso desenvolvimento tecnológico acena para os incautos como uma nova religião a ser seguida, tendo a lógica e a razão como seus dogmas, o computador como o seu altar e a ciência como a deusa a ser cegamente cultuada. Essa postura nos recorda Francis Bacon, falecido em 1626, que afirmava estar a esperança tomando uma nova forma, passando a se chamar fé no progresso, e que as novas descobertas iriam gerar um mundo novo, o reino do homem. Todavia, olhando em redor, percebemos que as maravilhas da ciência, especialmente a hoje tão em voga Inteligência Artificial, na verdade nos traz preocupações, medo, e muitos questionamentos sobre o que realmente tudo isso trará para a humanidade.
São muitos os pontos da Encíclica que merecem uma profunda reflexão. Entretanto, neste artigo vamos nos ater àquilo que diz respeito à Biotanatologia, atividade que começamos a divulgar nos anos 70, e que estuda e trabalha com o medo e a rejeição à morte, procurando dar uma melhor qualidade de vida às pessoas que vivenciam perdas significativas. Diz a carta em seu artigo 10: “Aqui surge a pergunta: queremos nós, realmente viver eternamente? Hoje muitas pessoas rejeitam a fé, talvez simplesmente porque a vida eterna não lhes parece uma coisa desejável. Não querem de modo algum a vida eterna, mas a presente.” E mais à frente: “Continuar a viver eternamente – sem fim – parece mais uma condenação do que um dom. … viver sempre, sem um termo, acabaria por ser fastidioso e, em última análise, insuportável.” E repete Ambrósio, Padre da Igreja: “Deus não instituiu a morte ao princípio, mas deu-a como remédio”. “Não devemos chorar a morte, que é a causa da salvação universal”.
Isso pode parecer, ao leitor mais apressado, certa apologia ao abandono da vida, e até mesmo à sua desvalorização. Contudo, é exatamente o oposto. A vida é um dom precioso que precisa ser cultivado com carinho e persistência O indesejável é o apego desmesurado à vida, como se permanecer na limitada condição de espaço e tempo fosse a nossa razão de ser. O nocivo é o apego insano às pessoas, aos bens materiais, aos prazeres sensuais, aos títulos e cargos, que nos escravizam e nos levam a consumir nossa autoestima, gerando um povo infeliz, sempre em busca do mais ter, na ilusão de que isso irá lhe proporcionar o prolongamento da vida e dos seus gozos.
Nociva se torna a ciência quando, possuindo enorme potencial para proporcionar qualidade de vida às pessoas, se ocupa muito mais em aumentar a quantidade de vida, sem se preocupar com as dores e sofrimentos que muitas vezes isso traz. Um exemplo marcante é a obstinação terapêutica nas UTIs, quando através de sofisticada tecnologia, se prolonga a morte, e não a vida. Mas podemos falar também das sonhadas clonagens humanas e das fantasiosas Sociedades Criônicas, que congelam cadáveres com a promessa de reanimá-los quando surgirem novas formas terapêuticas para doenças hoje incuráveis. Tudo isso numa manifestação explícita e alucinada do desejo de uma imortalidade que mata a esperança, ao querer perpetuar a vida nesta nossa realidade material, onde tudo é impermanente.
Afirma então a Carta Encíclica: “A ciência pode contribuir muito para a humanização do mundo e dos povos. Mas pode também destruir o homem e o mundo, se não for orientada por forças que se encontram fora dela”. E ainda: “Visto que o homem permanece sempre livre e dado que a sua liberdade é também sempre frágil, não existirá jamais neste mundo o reino do bem definitivamente consolidado”. E, apontando que “É importante saber: eu posso sempre continuar a esperar, ainda que, pela minha vida ou pelo momento histórico que estou a viver, aparentemente não tenha mais qualquer motivo para esperar”, a encíclica reafirma a essencialidade da esperança para todos os seres humanos, em qualquer lugar, em qualquer momento, em qualquer situação.
Em seu desenvolvimento, mostra que também para a morte a esperança é essencial. Esperança de que ela não represente o melancólico final sartriano, e sim a certeza de uma passagem, uma transformação que transcende toda explicação humana, estando bem dentro da afirmação de Cristo em seu último dia: “Não temais!”e “Tende confiança! Eu venci o mundo!” (Jo 16,33). Num tempo tão vazio de esperança, esta Carta Encíclica continua sendo um sopro animador para toda a humanidade!
(*) Médico e Escritor. Da Academia Mineira de Medicina e da Sociedade Brasileira de Médicos Escritores. Autor dos livros “Sobre o viver e o morrer”, “Luto”, “Suicídio” e “A morte em três tempos”, da Ed. Vozes;