O vírus da indiferença
José Carlos Nunes *
Já aqui escrevi que devido à pandemia da COVID-19 serão necessárias mudanças nos nossos estilos de vida e nos nossos valores morais. E que teremos de nos reinventar e voltar ao essencial. E isto será provavelmente o mais difícil: voltar ao essencial. O mesmo sentir tenho lido e escutado em outros comentadores, colunistas e opinionistas. Mas por onde começar? E o que fazer em concreto?
A homilia magistral, comovente e profunda do cardeal D. António Marto, proferida no passado dia 13 de maio, no recinto do Santuário de Fátima vazio, como nunca antes o vimos, são uma boa bússola e um bom itinerário para a Igreja e para a sociedade nos próximos tempos. Atrevo-me a citar alguns excertos.
Em primeiro lugar, tomar consciência de que a realidade que vivemos «é uma situação dramática e trágica, sem precedentes, que nos convida a refletir sobre a vida e, em primeiro lugar, a ir ao essencial, que muitas vezes esquecemos quando a vida corre bem». A vida humana, este bem precioso e dom de Deus, é a razão de ser das religiões e dos estados, dos regimes e governos, das instituições e organizações, da política e da economia, da arte e da cultura. Se não é para servir a vida humana, nada disto tem sentido.
Em segundo lugar, está na hora de reconhecer que o estilo de vida desenvolvido pelas sociedades modernas, assentes no individualismo e no relativismo, no capitalismo e no consumismo, no excessivo antropocentrismo e na tecnocracia, não respondem aos anseios mais profundos do ser humano. «Não se pode viver só para produzir e para consumir, para ter e para aparecer», alertou o bispo de Leiria-Fátima. A felicidade reside na responsabilidade, no compromisso, na bondade e no sacrifício, e não apenas no bem-estar ilusório e alienante.
Depois, «descobrimos também quão importante é a família como suporte humano e espiritual, como pequena Igreja doméstica nestes tempos de confinamento», sublinhou o cardeal Marto. Mas já antes, numa nota pastoral para organizar a pastoral em tempo de contingência, D. Jorge Ortiga, arcebispo de Braga, profeticamente almejou: «Precisamos de recuperar a família como “Igreja doméstica” e extrair daí todas as possibilidades que esta realidade encerra. Foi experiência no passado. Hoje deve ser laboratório, dando-lhe meios para uma nova expressão da Igreja.»
A seguir, damo-nos já conta de que esta pandemia «traz terríveis consequências económicas, sociais e laborais. Já está a gerar uma outra pandemia mais dolorosa, a da extensão da pobreza, da fome e da exclusão social, agravada pela cultura da indiferença e do individualismo. O vírus da indiferença só é derrotado com os anticorpos da compaixão e da solidariedade. Como cristãos, não podemos ficar indiferentes, olhar para o lado». Compaixão e solidariedade que devem ser praticadas por todos e exigidas aos governantes para que o contributo de todos seja para benefício de todos, isto é, do bem comum. O medo, a incerteza do futuro e a preocupação do presente não podem ser aproveitados para desrespeitar os direitos humanos e tão pouco para decisões ideológicas que comprometem toda a sociedade.
Por fim, mas não menos importante, aparece a urgência de «uma vida melhor na nossa casa comum, em paz com as criaturas, com os outros e com Deus, uma vida rica de sentido requer conversão». A conversão ecológica na qual o Papa Francisco tem insistido tanto e que passa pela simplicidade, sobriedade e humildade, para que possamos «combater a pobreza, devolver a dignidade aos excluídos e, simultaneamente, cuidar da natureza» (Laudato Si’, 139).
Porque a «fé ajuda-nos a ler e compreender os sinais dos tempos na hora presente, com um olhar renovador e esperançado», como refere o cardeal Marto, deixemos de lado toda e qualquer espécie de preguiça ou indiferença para começarmos hoje uma nova Humanidade.
Diretor da revista Família Cristã (Paulus Portugal