Discurso de ódio, o que é?

Evaldo D´Assumpção- Médico e Escritor

Passei um bom tempo sem dedicar-me às minhas crônicas. Isso se deveu a uma série de acontecimentos e atividades que ocuparam meu tempo, não deixando espaço para elaborar as inspirações que, por isso mesmo, ficaram escassas. Contudo, nesse sábado de outono, o céu límpido e ensolarado, a temperatura amena e a brisa fria que dança e entra pelas janelas do meu “estúdio-santuário”, despertou-me o desejo de comentar esse tema que não se esgota, nos dois lados da polarização que impregna as mentes mais pensantes. Refiro-me a ele, considerando-o até mesmo repugnante, pois seu simples uso já excreta o ódio que transborda de seus próprios apontadores. Seus dedos em riste, indicando o que sentem pelos que pensam diferentemente deles, testemunham a intolerância, a pretensão de superioridade, a intransigência e, por que não, a insegurança que mora lá no mais profundo do seu íntimo, com relação às “verdades” de que se julgam exclusivos possuidores. Sugerem mesmo, que necessariamente nelas não acreditam, mas que as utilizam somente para derrubar seus opositores, tirando disso todas as vantagens que conseguirem. Sejam materiais, intelectuais, e de dominação, para assim mais usufruírem das benesses que anteveem.

Mas, que “verdades” julgam possuir ou dominar? Pilatos perguntou à Cristo, na farsa do seu julgamento, o que era a verdade, Mas, deu-lhe as costas antes que obtivesse a resposta. Se é que ele a teria, pois seu interrogado bem sabia que a pergunta lhe fora feita somente por retórica. Afinal, como a autoridade no poder, acreditava-se Pilatos, como sendo a verdade. E isso lhe bastava. Como hoje basta às autoridades de plantão, as suas verdades. Por isso mesmo, sentem-se no direito de proibir aos outros terem verdades diferentes, como se existisse apenas uma. A deles.

Repito então, a pergunta de Pilatos: “O que é a verdade?” E a resposta me vem da filosofia, que desde os antigos gregos, contemplando a imensidão do universo, físico, intelectual, metafísico, não conseguiram chegar a uma definição única. Afinal, na condição humana não existe uma verdade única, mas diferentes percepções dos fatos e das coisas, no espaço e no tempo. Como acontece até os dias atuais, em que a ciência – para alguns, a razão única – nem mesmo ela, tão avançada, tem uma única verdade, mas múltiplas, dependendo da escola que se segue, do tempo em que se encontra, do local onde se desenvolve.

Contemplando honestamente a história, sem qualquer preconceito, constataremos que inúmeras “verdades” já surgiram, e se desintegraram. Lembremos o átomo, que por ter sido considerado indivisível, recebeu esse nome dado pelo filósofo grego Demócrito (546 – 460 a.C.). Verdade que por longo tempo persistiu. Hoje, será que alguém insiste em acredita-lo como tal? Em 1882, Theodor Billroth comentou que a realização de pericardiectomia equivaleria a um ato de prostituição em cirurgia. No ano seguinte, afirmou que o cirurgião que tentasse suturar uma ferida cardíaca deveria perder o respeito de seus colegas. Por acaso, algum cirurgião cardiovascular endossa hoje, “aquela” verdade? MeraldoZisman, médico em Recife, consultante honorário da Universidade de Oxford, comenta uma charge que viu, onde um médico, ao ser perguntado sobre quando iria terminar a pandemia Covid19, ele respondeu: “Não sei, sou médico, não sou político.” E conclui dizendo: “Na prática, a Medicina depende hoje das conclusões de uma Comissão Parlamentar de Inquérito do Senado. Pobre País…”

Voltando ao discurso de ódio, existe maior exemplo disso do que a pretensão de se implantar a “censura de pensamentos e opiniões”, usando para isso sofismas, firulas lexicológicas e malabarismos político-legais? Não é absurdamente irracional querer que todos pensem linearmente, reproduzindo os mundos de Orwell e Huxley? Quem irá decidir se o que penso ou falo, é falso ou verdadeiro? Não é pretencioso demais, afirmar-se que a verdade, só é o que a ciência diz? Mas, qual ciência? A sua, ou a minha? A que convém a alguns poucos no poder? Na própria ciência, não existem diferentes escolas, diferentes correntes, diferentes “verdades”? Devem ser extinguidos e proibidos, os debates sérios, as controvérsias que desafiam e nos fazem crescer e aprender? Devemos nos transformar em burrinhos de presépio, sempre a abanar a cabeça, dizendo sim, sim e sim? Enfim, será que a mediocridade é o que pretendem alguns, para melhor dominar a todos? Onde só uns poucos falam, e os demais são galhos de árvore seca? Para mim isso é o discurso de ódio.

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– Médico e Escritor. Da Academia Mineira de Medicina e da Sociedade Brasileira de Médicos Escritores. Autor dos livros “Sobre o viver e o morrer”, “Luto”, “Suicídio” e “A morte em três tempos”, da Ed. Vozes; “Crônicas à beira-mar”, da Ed. Del Rey. Também os dois volumes de suas memórias, esses disponíveis pelo e-mail: [email protected]

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