O que o Espírito Santo diz à Igreja?
Geraldo De Mori – Religioso Jesuíta
“… pois decidimos, o Espírito Santo e nós” (At 15,28a)
Vários textos sobre o processo sinodal já foram publicados na coluna do Palavra e Presença, pois grande parte do “povo fiel de Deus”, como denomina o Papa Francisco o conjunto dos fiéis que participam ativamente das atividades da Igreja, não acompanha no dia a dia os diversos passos do caminho sinodal. A etapa continental do Sínodo sobre a sinodalidade na América Latina e Caribe chegou a seu termo com a elaboração da síntese continental, realizada em Bogotá (17-20/03/2023) e enviada à Secretaria Geral do Sínodo dos Bispos em 31/03/2023. O texto, tornado público no final de março e início de abril, até o momento somente na versão castelhana, está organizado em oito partes, e necessita ter uma boa divulgação no Brasil.
Após o momento de escuta, realizado entre fins de 2021 e início de 2022, em todas as dioceses do mundo, cada uma delas enviou sua síntese à Conferência dos bispos do próprio país que, por sua vez, encaminhou a síntese da Igreja nacional à Secretaria Geral do Sínodo dos Bispos. Em setembro de 2022, uma comissão constituída por pessoas dos vários continentes, se reuniu em Roma para elaborar o Documento da Etapa Continental (DEC), que foi enviado às Igrejas locais para que pudessem reagir ao que tinha sido o resultado da escuta. A chamada Etapa Continental, teve então início, realizada a partir de janeiro nos vários continentes (1). A proposta era que em cada encontro fosse realizado, a partir do método da conversação espiritual, uma “escuta da escuta”, ou seja, uma releitura da primeira etapa, feita a partir do DEC, para apontar os elementos que pareciam ser os mais importantes para serem discutidos na Sessão Sinodal de outubro de 2023, devendo estar no Instrumentumlaboris.
A síntese enviada pelo CELAM à Secretaria Geral do Sínodo, começa com uma introdução geral, denominada “narrativa”, que retoma o caminho sinodal percorrido pela Igreja da América Latina e do Caribe. Em seguida, é proposta uma Introdução, na qual se recolhe o caminho sinodal da Igreja do continente, sobretudo o que se seguiu ao Concílio Vaticano II, com as Conferências Gerais do Episcopado Latino-Americano e Caribenho em Medellín, Puebla, Santo Domingo e Aparecida, e, mais recentemente, o dos processos que culminaram no Sínodo da Amazônia, que levaram à criação da Conferência Eclesial da Amazônia (CEAMA) e à realização da I Assembleia Eclesial da América Latina e o Caribe. A primeira parte da síntese, denominada “Protagonismo do Espírito em uma Igreja sinodal”, oferece uma chave trinitária e pneumatológica do caminho vivido pela Igreja da região e durante o processo sinodal. É interessante essa leitura, pois mostra que, mais que defender pautas e ideologias, propostas de uma tendência ou outra da Igreja, o importante é estar à escuta do que “o Espírito diz à Igreja”.
A segunda parte, “a sinodalidade do povo de Deus”, propõe uma volta à eclesiologia do Concílio Vaticano II, que, após uma série de imagens bíblicas sobre a Igreja, vista como “sacramento” da presença de Cristo no mundo, propõe como ponto de partida para pensar a Igreja a categoria “povo de Deus”. Essa categoria, inspirada, em parte na ideia de que Deus escolhe um povo com o qual estabelece uma aliança, como aparece no Antigo Testamento, propõe, na verdade, uma compreensão da Igreja que nasce do sacramento do batismo, que torna cada fiel “sacerdote, profeta e rei”, com uma dignidade igual, que não admite nenhuma separação ou privilégio entre os fiéis. O texto valoriza muito o percurso sinodal realizado na Igreja do continente, recorda a corresponsabilidade de todos/s na missão eclesial e lembra que há vários entraves no exercício da sinodalidade, sobretudo com relação ao lugar e papel da mulher na Igreja.
A terceira parte, “sinodalidade: o modo de ser e de atuar da Igreja”, valoriza o caminho de escuta trilhado no percurso sinodal, mostrando sua importância nos processos de discernimento, refletindo sobre os métodos de reflexão teológica e de “discernimento” que caracterizaram a pastoral da Igreja latino-americana e caribenha, sobretudo o método ver, julgar, agir, e apontando as contribuições, experimentadas no processo sinodal, do método da “conversação espiritual”, que valoriza a escuta como lugar fundamental da pastoral e da teologia, abrindo-se ao que os diferentes interlocutores do diálogo aportam e, o mais importante, “o que o Espírito diz à Igreja”.
A quarta parte, “Igreja sinodal missionária”, recorda que todo o processo sinodal visa à missão, que é constitutiva da identidade e do “mandado” do Cristo à Igreja. Com efeito, a Igreja existe para anunciar o que a faz viver, seu Senhor, cuja vida foi colocar-se ao serviço da vontade do Pai, e se caracteriza por um estar em “constante saída”. A vocação missionária não é privilégio dos ministros ordenados, mas de todos os fiéis, e se dá pelo anúncio explícito do Evangelho, mas também no testemunho do enviado do Pai.
A quinta parte, “a sinodalidade: compromisso socioambiental em um mundo fragmentado”, recolhe o grande legado do engajamento eclesial junto aos mais pobres e, nos últimos anos, junto à questão do cuidado da casa comum, presentes na dimensão profética e samaritana da Igreja, chamada, com urgência, a reatualizar a opção preferencial pelos pobres no cuidado e defesa dos novos rostos da pobreza no continente.
A sexta parte, “conversão sinodal e reforma das estruturas”, aponta os principais apelos à reforma na Igreja e da Igreja no atual momento, como o da prevenção dos abusos, o da obrigatoriedade dos conselhos, o da prestação de contas, o da criação de novas estruturas, como as das Conferências Eclesiais, as da relação entre sensusfidei, sinodalidade, colegialidade, primado e serviço da teologia. A sétima parte, “vocações, carismas e ministérios em chave sinodal”, aprofunda o apelo à conversão e à reforma sinodal, mostrando a grande riqueza que o Espírito suscita na Igreja, com vocações, carismas e ministérios diversos. São apontadas aí algumas demandas, como a da expansão da compreensão do ministério dos leigos, a valorização do lugar da mulher. A denúncia do clericalismo emerge com força, com o apelo à renovação da compreensão do ministério ordenado, com a abertura à ordenação de homens casados e de mulheres.
A última parte, “contribuições do itinerário latino-americano e caribenho”, reitera alguns elementos a serem debatidos no sínodo, como as relações mútuas entre eclesialidade, sinodalidade, ministerialidade e colegialidade. As novas formas de organização surgidas na América Latina, como a CEAMA e a I Conferência Eclesial levantam interrogações sobre sua função e papel, como também o lugar e papel da teologia que tem como ponto de partida o discernimento dos “sinais dos tempos”. Finalmente, o texto questiona as relações entre Igreja local e Igreja universal, mostrando a importância de um melhor equilíbrio entre a perspectiva vertical e a horizontal na condução dos destinos da Igreja que de fato se queira e viva efetivamente como sinodal.
(1) A Etapa Continental do Sínodo foi realizada nos encontros regionais da América Central e México, entre os dias 13 e 17 de fevereiro; do Caribe, entre os dias 20 e 24 de fevereiro; da região Bolivariana, entre os dias 27 de fevereiro e 3 de março, e do Cone Sul, entre os dias 6 e 10 de março, nas quais participaram 415 pessoas, entre bispos, padres, diáconos, religiosos/as e leigos/as,
Geraldo De Mori, SJ é professor e pesquisador no departamento de Teologia da FAJE e participou ativamente na Etapa Continental do Sínodo, tendo estado presente ao encontro da região Bolivariana e na elaboração da síntese preparada pelo CELAM para a Secretaria Geral do Sínodo