Ser Missionário em Cabo Delgado: viver em estado permanente de guerra
Edegard da Silva Júnior– Missionário Saletino
Nessa região, os 35 missionários e missionárias – seis moçambicanos e outros provenientes de oito países do mundo – colocaram-se a serviço da população tanto no atendimento religioso quanto nas ações sociais.
Na Província de Cabo Delgado está localizada a Diocese de Pemba. Ao norte dessa Província, estão nove distritos que enfrentam, há três anos e seis meses, uma guerra que tem deixado consequências nefastas, penalizando sobretudo os mais pobres.
O sonho do recém-transferido bispo de Pemba, Dom Luiz Fernando Lisboa (atualmente em missão no Brasil), era conseguir agentes de pastoral para atender essa região, constituída pelos distritos: Mocímboa da Praia, Palma, Nangade, Mueda, Muidumbe, Macomia, Meluco, Quissanga e Ilha do Ibo. Assim aconteceu! Além dos missionários que aqui já residiam, várias outras congregações religiosas também acolheram o convite de Dom Luiz. Nessa região, os 35 missionários e missionárias – seis moçambicanos e outros provenientes de oito países do mundo – colocaram-se a serviço da população tanto no atendimento religioso quanto nas ações sociais.
Região rica e povo pobre
Essa região possui uma exuberante riqueza natural. É um território que contém uma enorme reserva de gás, descoberta recentemente, além de madeira, grafite, pedras preciosas, petróleo, etc. Todos esses recursos naturais e minerais fazem crescer a ganância de muita gente poderosa, cujas intenções consistem em explorar a região.
Paradoxalmente, por outro lado, o povo local em nada usufrui desses bens. Suas pequenas aldeias são formadas por uma população trabalhadora e pobre. Os moradores vivem da agricultura familiar; cultivam principalmente o milho branco, principal produto da alimentação; levam, desse modo, uma vida simples entre o trabalho na lavoura (machamba) e o dia a dia em comunidade. Dependendo do distrito, essa realidade é mesclada pelo convívio entre as diversas culturas (macua, maconde, etc.) e as expressões religiosas (mulçumanas e cristãs).
Chegada dos missionários saletinos
O Distrito de Muidumbe
Muidumbe tem uma população de 79 mil habitantes, sendo a segunda missão mais antiga da diocese. Em nosso planejamento pastoral, estávamos a conversar sobre a preparação dos festejos dos 100 anos da missão, que “deveria” acontecer em 2024.
O distrito de Muidumbe é conhecido como “Planalto do Povo Maconde”. Em suas aldeias, são faladas as línguas shimaconde e portuguesa. Esse distrito é formado por 26 aldeias, sendo que dezoito delas já foram atacadas. A primeira aldeia atingida pelos ataques foi a Aldeia de Criação, no dia 7 de novembro de 2019. Depois desse ataque, nunca mais tivemos paz.
As demais aldeias foram atacadas em épocas diferentes: Magaya, Chitunda, Rua Rua, 1º de Maio, Miangalewa e Xitaxi, onde aconteceu o massacre de 52 jovens, entre outras. A sede da missão saletina ficava na aldeia de Muambula. Tínhamos uma boa infraestrutura para atender a população: um templo espaçoso; uma escola primária e secundária com três mil alunos matriculados; uma escolinha/creche que atendia cerca de 80 crianças; a rádio comunitária São Francisco de Assis; um ambulatório dentário; a casa dos padres, a casa das irmãs, o poço, salas de catequese, dormitórios, cozinha, refeitório; a associação dos pequenos agricultores. Tudo isso foi destruído com os ataques que aconteceram entre 31 de outubro e 19 de novembro de 2020, quando os terroristas invadiram e tomaram conta da aldeia.
Ataque de abril de 2020
Em Muidumbe, houve o primeiro ataque no mês de abril de 2020; os terroristas destruíram o único hospital do distrito, a pequena agência bancária, o posto de gasolina e os prédios da administração. Após esse ataque, fugimos para Pemba.
Dói o nosso coração quando vemos que tudo se transformou em cinzas e destroços. Temos esperança de um dia voltar, mas sabemos que levará um bom tempo para reerguer o que foi queimado e destruído. Sabemos que as estruturas de cimento – a emissora de rádio, o templo etc. – são possíveis de serem reconstruídas, mas nunca teremos de volta as muitas vidas que foram ceifadas de forma violenta; corpos decapitados, jovens sequestrados, crianças desaparecidas. São relatos ouvidos que nos cortam o coração.
Neste momento, a nossa preocupação maior não é reconstruir prédios (até mesmo porque nem está previsto), mas tentar ajudar a refazer as histórias de vidas das pessoas que sobreviveram, muitas delas entristecidas e chorosas pelos seus familiares assassinados ou desaparecidos.
A tristeza está estampada no rosto de cada pessoa deslocada. Vivemos um luto profundo que afeta todas as expressões da vida comunitária: a língua falada entre eles, os costumes, os cantos e danças, as festas do povo. O canto de alegria deu lugar ao pranto. O som forte da dança do Mapiko deu lugar ao silêncio. Assemelha-se à dor do exílio, da diáspora forçada, tal como viveu o povo de Deus no Antigo Testamento.
Nós, os missionários, também sentimos saudades. Gostaríamos muito de estar presentes na comunidade, exercendo a missão que nos foi confiada: cuidar das escolas, da pastoral da saúde, da rádio comunitária, dos dias cheios de encontros. Ficávamos à espera da noite para o descanso e, no dia seguinte, recomeçar as atividades. Escrevemos uma carta para expressar nossa vontade de estar com o povo. Enquanto missionários, estamos também deslocados. Evidentemente que em condições bem diferentes, pois, mesmo tendo perdido tudo com a destruição das nossas casas, temos o amparo das nossas instituições. É um quadro bem diferente do das pessoas que vivem em condições precárias, seja nos acampamentos, seja nos quintais das casas onde são acolhidas.
Os missionários saletinos chegaram à diocese de Pemba em dezembro de 2017. A guerra iniciara em outubro desse mesmo ano. Entre nós, os missionários, desenvolvemos uma maneira de nos informar sobre as notícias de cada distrito. Como fazíamos parte da mesma região pastoral, acompanhávamos a realidade de cada lugar e, quando acontecia algum ataque em Mocímboa da Praia, Macomia, Quissanga, Meluco, Palma e Mueda, ficávamos sabendo imediatamente. Estamos há três anos aqui, no entanto, nosso conhecimento direto acerca dos ataques causados pela guerra se restringe à região de Muidumbe, distrito que nos foi confiado pelo até então bispo Dom Luiz.
A fuga para o mato
Quando acontece o ataque, a população foge para o mato. Algumas famílias costumavam combinar entre si como proceder no momento da chegada dos terroristas. Mas o mal não avisa quando chegará, e essas famílias são apanhadas de surpresa, tendo que, naquele momento, sair com o “pouco” que podem ou que conseguem salvar.
As pessoas ficam no mato em condições precárias, passam fome e sede até conseguirem meios de chegar a uma cidade fora da área da guerra. Ouvimos relatos tristes dessa indesejada “travessia”. Ajudamos muitas famílias a “fugir” da mata para a cidade pagando-lhes o transporte. Nessa hora, agradecemos o gesto da solidariedade de muitas pessoas. Ao saírem do mato, dirigem-se para diversas cidades; não apenas Pemba, mas também as províncias vizinhas têm recebido muitos deslocados. Chegam à cidade e vão para as casas de familiares ou de conhecidos. Muitas dessas casas chegam a receber de 20 a 30 pessoas, enquanto outros vão para os assentamentos criados pelo governo moçambicano, também marcados pelas condições extremamente precárias.
O rosto fala…
Depois de tantos dias no mato, passando por todo tipo de privação, eles chegam com o rosto desfigurado, triste e preocupado. São acometidos de muitas doenças (diarreia, anemia, malária), com maior prevalência nas mulheres e crianças. Muitas dessas mulheres deixaram filhos e esposos perdidos, isso quando não presenciaram o rapto ou o assassinato de seus familiares. Assim, além da debilitação física, trazem consigo situações emocionais que merecem cuidados psicológicos. Quase sempre elas são acolhidas por pessoas das organizações humanitárias e da ação pastoral da diocese de Pemba, através da Cáritas e das paróquias.
O trabalho humanitário
A presença das diversas organizações humanitárias assegura a ação básica para quem chega, dando-lhes: lona, balde, roupa, remédios, alimentos. Cada uma realiza o que pode. Nessa guerra, sempre somos surpreendidos por uma nova situação. Houve um momento em que parecia tudo “tranquilo”, e, de repente, eis que, em pequenas embarcações, milhares de pessoas chegaram à praia do bairro do Paquite. Nesse dia, direcionamos todas as nossas forças para aquela realidade. Portanto, por mais que as organizações humanitárias se esforcem, o número de pessoas que necessitam desse apoio tem crescido desproporcionalmente. Já se fala em mais de 700 mil deslocados presentes nas diversas cidades.
É preciso denunciar: “se calarem a voz dos profetas as pedras gritarão!”
A diocese de Pemba vem há muito tempo denunciando essa onda de violência. Quando estávamos na região norte, em Muidumbe, falávamos da guerra e da segurança em cada encontro com o povo.
Enquanto missionários, percebemos o aumento da violência e a atualização dos meios utilizados para violentar as pessoas. No início, os terroristas faziam uso de catanas (grandes facões utilizados na lavoura) e, atualmente, utilizam armas pesadas e sofisticadas, de grosso calibre.
A simplicidade da vida pacata foi interrompida…
O dia a dia do povo era marcado por ações simples: buscar água no poço, pilar a farinha, sentar-se ao chão, em frente da casa, para conversar, etc. Tudo isso foi interrompido quando, no dia 5 de outubro de 2017, aconteceu o primeiro ataque ao distrito de Mocímboa da Praia. Desde então, não tivemos mais paz. A vida simples se modificara e o medo constante agora é parte de nós. Os horários das celebrações e das aulas foram modificados; ninguém circulava tranquilo nas aldeias; começaram a atacar os carros que transportavam as pessoas, que passaram a ter medo de viajar. Ao chegar alguém desconhecido na comunidade, imediatamente deveria ser notificada a sua presença. Por exemplo, em muitas aldeias, realizavam-se encontros para explicar alguns códigos, caso viesse a acontecer a chegada dos insurgentes. Em cada ataque a um distrito da região, todos ficam apavorados, como a dizer: “vão-nos atacar também”…
Silêncio ao tratar dos motivos desta guerra…
Entre a população nem sempre era possível conversar sobre os “motivos da guerra”, por causa do medo ou pelo facto de simplesmente não saber. Da parte das autoridades, nenhuma explicação oficial era passada para a população. Um silêncio que também dava medo. Chegou-se a falar de um “rosto oculto da guerra”. Só que essa guerra tinha rosto, e rosto cruel, e quem o percebia era a população que via de perto os terroristas a matar e atacar suas casas e comunidades.
Fala-se numa somatória de fatores. Cremos que entre eles estará também o fundamentalismo religioso, que leva ao extremo às regras das práticas religiosas. Em Moçambique, é expressiva a presença dos mulçumanos. O que em nada tem a ver com o fundamentalismo extremista. Quantas vezes, em Pemba, acordamos ao som dos cânticos e preces dos cultos nas mesquitas. Temos aprendido, sobretudo com o Papa Francisco, a necessidade de conservar a dimensão do diálogo, do respeito e do bem viver entre as religiões. Posso afirmar que, nesses três anos, no distrito de Muidumbe, nunca presenciamos conflitos religiosos ou desentendimentos entre vizinhos por motivos religiosos.
O ataque recente ao distrito de Palma
Das nove localidades citadas no início, apenas Mueda não foi atacada, embora a população viva em clima de medo e de prontidão. Circulam “boatos” de que novos ataques acontecerão. Dizem até de um possível ataque à cidade de Pemba, capital da província.
No dia 24 de março, o distrito de Palma foi tomado por um ataque, que traz algumas características peculiares: nessa região está o grande investimento da multinacional francesa “Total”. Essa empresa tem investido milhões de euros para a construção da “cidade do gás”. Em Palma, viviam pessoas das organizações humanitárias e funcionários da empresa, sendo eles moçambicanos e estrangeiros.
A cidade foi tomada em plena luz do dia. Comenta-se que houve mortes violentas, marcadas por decapitações e raptos. Aos pobres restou novamente o mato; e, mais uma vez, Pemba e outras cidades recebem os deslocados que chegam em busca de teto, pão e dignidade.
O dia a dia dos deslocados
Muitos deslocados continuam vivendo de favores em casa de parentes ou conhecidos; outros estão nos assentamentos, em casas feitas de capim e lona, enfrentando o tempo das chuvas; uma outra parte está nos novos reassentamentos. Este encaminhamento, este modo de resolver a situação, dá a entender que as famílias devem pensar as suas vidas sem sonhar com um possível retorno para o local onde deixaram as suas histórias e raízes.
Nós, missionários e missionárias, estamos também nesse exílio, procurando entender o que Deus está a nos dizer. A oração medieval da Salve Rainha expressa a nossa vivência: “gemendo e chorando neste vale de lágrimas”.
Cabo Delgado quer Paz! Na sua prece e da comunidade em que você participa, coloque a intenção pela paz em Moçambique. Essa guerra precisa ser denunciada. Necessitamos de seu apoio para continuarmos com a ação humanitária.
Fonte: site www.ponto.sj.pt