Sobre a missão sacerdotal neste tempo de pandemia
Pe. Marcelo José Monteiro da Costa *
A missão sacerdotal é a missão dada pelo próprio Jesus Cristo que disse: “Ide pelo mundo e anuncia a Boa Nova para todos os povos, batizando-os e consagrando-os ao Pai, ao Filho e ao Espírito Santo e ensinando-lhes a cumprir tudo que vos mandei” (Mt 28, 19-20).
Neste tempo de pandemia que surgiu no final de 2019 (China), se torna tão necessária a ação sacerdotal de levar essa Boa Nova. Vale a pena recordar as palavras do profeta Isaías: “O espírito do Senhor está sobre mim, porque o Senhor me ungiu. Enviou-me para dar uma boa notícia aos que sofrem, para curar os corações desgarrados, para proclamar a anistia aos cativos e aos prisioneiros a liberdade, para proclamar o ano de graça do Senhor, o dia de desforra do nosso Deus; para consolar os aflitos, os afligidos de Sião” (Is 61, 1-2).
Essas palavras proféticas do profeta Isaías nos dão um norte em nossa ação sacerdotal, principalmente, para este tempo, em que a insegurança, o medo, o sofrimento e a terminalidade estão presentes no mundo.
“Enviou-me para dar uma boa notícia aos que sofrem”: qualquer doença faz sofrer o ser humano. A doença da alma é a pior de todas, pois nos afastamos da graça de Deus e com isso, acarreta o pecado, ou seja, “erramos o alvo”, “não atingimos o propósito”, que em grego é “hamartia”. Aproveitar este momento, para fazer uma boa confissão, pegar a Palavra de Deus, rezar em família e com amigos pela internet, realizar obras caritativas aos que estão passando necessidades de uma boa palavra, de alimentos, de roupas, de uma assistência profissional. “Estive com fome e me deste de comer, estive com sede e me deste de beber, estava nu e me vestistes, estava peregrino e me acolhestes,…” (Mt 25).
Foram muitas confissões neste período, muitos atendimentos por telefone consolando os corações angustiados e aflitos. Foram muitos atendimentos com os profissionais na área da saúde que estavam desesperados, com medo, angustiados com pandemia.
“Padre, tudo bem? Por favor, um apelo mesmo! Coloque os profissionais de saúde e como o senhor e todos os brasileiros em suas orações (missas), pois já estamos vivendo um caos. Estou trabalhando em um hospital com porta aberta de emergência no Rio de Janeiro e é simplesmente desesperador. Padre, por favor desculpa incomodar, me ajuda, eu acho que me infectei, vou precisar ficar em quarentena. O pior é que tive contato com muita gente, inclusive meus pais que são do grupo de risco. Nunca tive um desespero tão grande na minha vida. Eu só estou falando com o senhor porque eu confio, porque você vai me entender e você não tem nada com isso. Me desculpa atrapalhar…Por favor, reze por mim, pela minha família, pelos meus pacientes que eu possa mesmo sem intenção ter infectado. Padre estou vendo pessoas morrerem e vamos ver muitas pessoas morrerem. Estamos no caos. Eu não posso ver minha família morrer por isso, padre, eu não vou aguentar. Eu nunca passei por isso, sempre tive equilíbrio, pois trabalho na hematologia, vejo a morte de perto e nunca me senti assim.”
Depois eu conversei com ela ao telefone lhe acalmando a alma: “Filha, você já passou por muitas coisas na área da hematologia: dores, sofrimentos e terminalidades. Agora, para este momento, você vai ampliar o seu conhecimento, sua capacidade e levar forças, para as pessoas vão precisar muito de ti.” Na semana seguinte, falo com ela mais uma vez, e ela me dá um ótimo feedback da conversa: “Padre, aquela conversa contigo foi essencial, pois agora estou bem melhor. Saí de casa e vim morar com a minha irmã justamente por meus pais e avós serem do grupo de risco extremo. A minha cabeça ficou melhor com isso. Muito obrigada mais uma vez pelo apoio, pois me ajudou muito! (CONVERSAS DE MARÇO DE 2020).
Possamos favorecer com as pessoas uma boa escuta e conversa e formar grupos de apoio, para poder contornar as situações que estamos vivendo neste momento tão critico da humanidade.
Uma das doenças da psiqué é quando tiramos a base de que não sou amado, não tenho valor e amparo. São três distorções, em que, a pessoa pode trazeruma certeza consigo (irracional ou inconsciente) de que é incompetente, fracassada, rejeitada, inaceitável, sentindo-se um lixo ou um ser perigoso/maligno e não tendo valor nenhum,…Estes tipos de pensamento podem levar o ser humano ao sofrimento psíquico ou diversos tipos de transtornos: ansiedade, depressão, fobias, uso de drogas, etc. Essas crenças nucleares distorcidas (TCC) podem ser em relação a si mesmo, aos outros (querem me prejudicar, as pessoas são superiores a mim, são mais amadas e úteis) e ao mundo (o mundo é injusto, imprevisível, incontrolável). Hoje com a pandemia, podemos estar alimentando em nosso coração de que não há esperança, está tudo incontrolável, vamos morrer todos. Possamos fazer a nossa parte e assim, estabilizarmos este momento crítico que estamos vivendo. “Tudo passa, só Deus basta” (Santa Tereza de Ávila).
Conversava com muitas senhoras angustiadas e algumas tinham ficado viúvas naquele ano. Elas falavam das suas solidões e ainda mais com a pandemia, acentuou as suas angústias. Fazia orações com ela e isso confortava um pouco suas almas.
Realizei alguns velórios online (uma coisa que nunca tinha pensando em minha vida realizar), para confortar um pouco as angustias dos familiares com o seu ente querido.
Recentemente, fui atender um amigo que tentou suicídio. Ele me deixou uma mensagem que tomou alguns remédios e fui logo socorrê-lo em sua casa e indo ao hospital. O médico por sua vez, estava na dúvida se o internava ou não. Falei sobre os sintomas e sinais psiquiátricos que ele estava manifestando: alucinações (experiências sensoriais reais baseadas em coisas irreais, ou seja, inexistentes) auditivas e visuais e delírios (interpretação errada da realidade) de perseguição. Juntos resolvemos a melhor maneira de ação, para dar melhor segurança a sua saúde, pois ele morava sozinho e na casa dos seus pais não dava, porque seu pai tinha problemas psiquiátricos. A resolução foi interna-lo numa clínica. E fui eu tarde da noite, para interna-lo. Foi um dia bem desgastante, mas que, revigorou em minha alma e a minha vocação sacerdotal.
Em relação ao suicídio, há várias questões que podem afetar a psiqué do ser humano e aumentar os fatores de risco da pessoa: violência, transtornos por consumo de álcool, abuso de substância e sentimentos de perda, desespero, etc. A pessoa em si não quer tirar a vida, mas quer amenizar a dor que é contínua. Com isso, possamos estar atentos ao outro:
- Questões verbais: “não aguento mais essa vida”, “a vida não tem sentido”, “já não estarei aqui quando você voltar na segunda-feira”.
- Mudanças de comportamento: pessoas ativas se retraem e se colocam em perigo constante;
- Sinais de depressão: mudanças de hábitos alimentares, perda de apetite, sonolência, ansiedade, inquietação, sentimento de desespero e culpa, não desfrutar da vida, etc.
- Abuso de substâncias ativas como alcoolismo e drogas;
- Dar de presentes objetos de sua propriedade e depois realiza o ato.
- Problemas na escola, no trabalho e na família gerando baixo rendimento;
- Tomar cuidado com a tranquilidade inesperada e repentina (ficar mais atento);
- Outros fatores como queixas de dores, hiperatividade, promiscuidade sexual, dor ou sofrimento prolongados depois de perdas ou mortes de entes queridos ou animais de estimação;
Sempre possamos estar atentos e é muito prudente não menosprezar tais sintomas no auxílio a pessoa com ideias suicidas. Possamos ser bons samaritanos, pois juntos somos mais e assim, realizarmos uma rede de solidariedade (igrejas, instituições, ONGs) na prevenção ao suicídio.
A doença social de que não consigo me socializar mais com osoutros, principalmente com os meus em casa, neste período crítico. A pandemia mostra que eu não tenho uma interação com minha família, de que eu vivia com superficialidade. É a tal chamada “Modernidade líquida”: uma crítica do sociólogo Baumen que mostra uma sociedade imediatista, leve, ou seja, sem muito compromisso (superficial). Com este tipo de filosofia de vida, os relacionamentos se tornam mais superficiais e acabam prejudicando o nosso desenvolvimento biopsicossocial e espiritual. Possamos aproveitar este momento e ir ao encontro dos nossos e pedir perdão e assim, voltarmos a valorizar a nossa família. “Ohana quer dizer família e família quer dizer aquela que nunca nos esquece ou nos abandona” (Lilo&Stitch) ou dom da graça de Deus em havaiano.
Atendi alguns casais e atendo até hoje com problemas conjugais. A pandemia com o confinamento mostrou, para nós a nossa fragilidade em nossos convívios, pois se apresentam superficiais, sem diálogo. Mas tudo pode ser contornado com uma boa comunicação e assertividade (virtude que nos ensina a não julgar, não ser agressivo e não se omitir: “Eu não gostei do que você me falou, pois tirou a minha paz”).
As doenças do físico estão presentes e que podem nos causar desequilíbrio, seja no próprio corpo ou na psiqué humana. Com a COVID-19, vários estudos são relacionados como Síndrome Respiratória Aguda Grave (SARS) e Síndrome Respiratória do Oriente Médio (MERS), os pesquisadores apontam os problemas físicos como o acometimento mental de pacientes infectados, perda de memória, alterações no sono e estresse pós-traumático, depressão e ansiedade, meses após a recuperação do quadro viral. Além do quadro do risco para a saúde mental em relação ao distanciamento social. Possamos criar uma rede de apoio multidisciplinar, para ajudar aos que estão passando por alguma necessidade.
Mediante ao novo surto da COVID-19, o hospital reforçou a segurança, mas não proibiu a entrada dos familiares e a visita religiosa. Segundo, o doutor Lucas (cardiologista) é fundamental a entrada dos familiares e da assistência religiosa, para o paciente que se encontra enfermo. Ele lembrou também que na faculdade de medicina não teve nenhuma matéria falando a respeito da importância psicológica e espiritual e que aprendeu depois de formado.
Os cursos de medicina, antigamente, eram estruturados, a partir de uma visão e paradigma físico mecanicista. As matérias tinham a probabilidade de 95% no aspecto fisiológico, ou seja, anatomia, fisiologia, farmacologia, genética e dentre outras (Mezzono, 2003). Expande-se agora, um olhar integral: biopsicossocial e espiritual que favorece um lugar para exercer uma humanização hospitalar entre os profissionais na área da saúde (Costa, 2021).
Percebi o seu aspecto humanitário ao se relacionar com cada um dos familiares e comigo no espaço de fora da área da coronariana, mesmo nesta pandemia. E dentro da área coronariana ele desabafou comigo em relação diante de seus limites em lidar com a terminalidade.
“A morte, em nossa cultura, ainda é vista como um fracasso pessoal ou da medicina, quando na verdade é apenas uma etapa, um evento na existência, que continuará em outras dimensões: cósmica, eterna e divina” (Mezzono, 2003).
Duas preocupações, no âmbito da Saúde, que podem ocorrer:
- a obstinação terapêutica (distanásia) que quer a todo custo salvar as vidas, mas sem poder, e com isso, prejudicar a qualidade de vida do paciente;
- a abstinação terapêutica, onde observa-se a dificuldade do profissional em não saber lidar com a terminalidade e com isso, se afasta dos pacientes de maneira friamente.
Os currículos de medicina procuram ensinar a defender a vida, assegurando a saúde – algo que é primordial – mas devem ensinar a lidar com a morte, pois é uma realidade presente em nossa vida (Mezzono, 2003).
“Apesar dos profissionais demonstrarem grande empenho na mobilização dos seus recursos pessoais, há também os efeitos psicológicos de lidar diariamente com a dor, o sofrimento e a morte. Isso demonstra a necessidade de preparação, suporte e acompanhamento psicológico do profissional da saúde que também precisa de cuidado. É cuidar de quem cuida, para que o hospital como microssistema de tantos integrantes possa proporcionar um ambiente saudável, de desenvolvimento de processos proximais para todos os envolvidos. Lidar com a dor do outro envolve lidar com a própria dor e por isso, os profissionais precisam ter espaços de diálogo sobre essas questões” (Costa, 2020).
Escrevi esta carta para o médico e a instituição, para que possam multiplicar mais ações humanitárias dentro dos hospitais e assim, proporcional o equilíbrio em lidar com os aspectos saúde-doença anfemeramente e ter uma noção melhor do nosso desenvolvimento e papel na área da saúde e na sociedade.
As doenças da desigualdade social que geram a morte e causam vários fatores de vulnerabilidade no ser humano. Um exemplo bem claro que estamos assistindo, nesta pandemia, é a falta do investimento na saúde e com isso, gera no que chamamos na bioética de mistanásia, ou seja, a negligência do governo ou instituições ou pessoal no cuidado ao paciente que acaba morrendo nos corredores dos hospitais (Ricci, 2017). Há também outras questões de mistanásia como violência, drogas, corrupção que possam ser discutidas e que afetam profundamente a dignidade humana. Um padre amigo meu me falava que a droga e a prática do aborto são uma pandemia, em que, as pessoas têm que tomar consciência deste mal no mundo.
Contudo, a missão de ser padre é seguir os ensinamentos de Jesus em seu amor e principalmente, mostrar sua face misericordiosa. Faço isso frequentemente nas orações pessoais ou nas ações em missão que realizo nos hospitais, asilos, creches, presídios, ruas, favelas. Jesus quando veio ao mundo quis libertar o homem por inteiro através de sua Palavra e ações. Ele curou o leproso e ao curar suas chagas físicas Jesus o cura de suas questões emocionais e o reintegra na sociedade e religião. De fato, Jesus realizou um olhar bioecológico do desenvolvimento humano: “Eu vim para que todos tenham e vida em abundância” (Jo 10, 10). E é claro, se não for concretizado aqui será concretizado em plenitude no Reino dos Céus, pois o nosso esperançar vai muito mais além da cura física ou emocional.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRAFICAS
Bíblia do Peregrino. (2011). São Paulo: Paulus.
Costa, M. J. M. C. (2020). Resiliência Profissional em equipes de saúde que cuidam de pacientes com doenças oncológicas em contexto hospitalar. Dissertação de Mestrado na Universidade Salgado de Oliveira – Niterói.
Mezzono, A (2003). Fundamentos da humanização hospitalar: uma visão multiprofissional. São Paulo: Edições Loyola.
Ricci, A. L. (2017). Morte Social: mistanásia e bioética. São Paulo: Paulus.
Sacerdote da Arquidiocese de Niterói (RJ)
Literalmente, um Dom Divino, que trata um dos maiores males da atualidade com Santa sabedoria e profissionalmente nos forma e acolhe.
Muito bom!!!