Laborem exercens: 40 anos de uma encíclica sempre atual

Elvis Rezende Messias

Professor, estudioso da Doutrina Social da Igreja. Autor de “O evangelho social: manual básico de Doutrina Social da Igreja” (Paulus, 2020), em parceria com Dom Pedro Cruz, bispo da Diocese de Campanha/MG

 A encíclica social Laborem exercens (LE), de São João Paulo II, foi publicada em 14 de setembro de 1981 em comemoração ao 90º aniversário da Rerum novarum (RN), de Leão XIII. Programada para ser publicada em 15 de maio de 1981, a LE só veio a público em setembro por conta do atentado sofrido por João Paulo II em 13 de maio daquele ano, às vésperas de sua assinatura. Somente após a recuperação do pontífice é que ela, então, tornou-se pública.

O documento versa sobre o trabalho humano, reconhecendo sua centralidade na vida das pessoas e declarando-o como a chave de toda a “questão social” (LE, 3). 90 anos antes de sua publicação, a condição degradante dos operários no contexto da industrialização capitalista era a “questão social” que moveu Leão XIII a publicar a RN, reconhecendo que a Igreja tinha não somente o direito, mas o dever de se pronunciar sobre matéria social, sobretudo diante de situações em que se vê afrontada a dignidade integral da pessoa humana. João Paulo II, por sua vez, percebe que a questão laboral segue sendo central na sociedade contemporânea, tanto em seu aspecto positivo de manifestação singular da natureza humana quanto em seu aspecto negativo de realidade ainda atacada por uma lógica de exploração alienante, com novas formas de vilipêndio em um cenário de nova revolução industrial. Logo no início da encíclica, diz que a Igreja “considera sua tarefa fazer com que sejam sempre tidos presentes a dignidade e os direitos dos homens do trabalho, estigmatizar as situações em que são violados e contribuir para orientar as aludidas mutações, para que se torne realidade um progresso autêntico do homem e da sociedade” (LE, 1).

 

A estrutura da encíclica

A LE é composta de apenas 27 números. Todavia, cada um deles é marcadamente complexo e longo, sendo caracterizado por minuciosas análises e problematizações acerca da realidade atual do trabalho humano, bem como por uma consistente teologia do trabalho e da pessoa humana do trabalhador perpassando todo o documento. Nas palavras do papa: “eu desejo dedicar o presente documento exatamente ao trabalho humano; e desejo mais ainda dedicá-lo ao homem, visto no amplo contexto dessa realidade que é o trabalho” (LE, 1). O tom da encíclica, como se vê, é marcadamente personalista: o centro é a pessoa humana.

A encíclica é divida em 5 grandes partes, havendo uma temática geral de cada um dos números que compõem essas partes.

Na parte I, intitulada Introdução, têm-se os números de 1 a 3:

  • O trabalho humano a 90 anos da RN.
  • Na linha do desenvolvimento orgânico da ação e do Ensino Social da Igreja.
  • O problema do trabalho, chave da questão social.

Na parte da II, intitulada O trabalho e o homem, têm-se os números de 4 a 10:

  • No livro do Gênesis.
  • O trabalho em sentido objetivo: a técnica.
  • O trabalho no sentido subjetivo: o homem-sujeito do trabalho.
  • Uma ameaça à hierarquia dos valores.
  • Solidariedade dos homens do trabalho.
  • Trabalho e dignidade da pessoa.
  • Trabalho e sociedade: família, nação.

Na parte III, intitulada O conflito entre trabalho e capital na fase atual da história, têm-se os números de 11 a 15:

  • Dimensões de tal conflito.
  • Prioridade do trabalho.
  • “Economismo” e materialismo.
  • Trabalho e propriedade.
  • Argumento personalista.

Na parte IV, intitulada Direitos dos homens do trabalho, têm-se os números de 16 a 23:

  • No vasto contexto dos direitos do homem.
  • Doador de trabalho: “indireto” e “direto”.
  • O problema do emprego.
  • Salário e outras subvenções sociais.
  • A importância dos sindicatos.
  • Dignidade do trabalho agrícola.
  • A pessoa deficiente e o trabalho.
  • O trabalho e o problema da emigração.

Na parte V, por fim, intitulada Elementos para uma espiritualidade do trabalho, têm-se os números de 24 a 27:

  • Papel particular da Igreja.
  • O trabalho como participação na obra do Criador.
  • Cristo, o homem do trabalho.
  • O trabalho humano à luz da Cruz e da Ressurreição de Cristo.

 

Antropologia bíblica e personalismo cristão

Um detalhe interessante é que a encíclica possui várias notas de rodapé – e esse fenômeno é relativamente comum nas encíclicas da maioria dos papas mais recentes. Contudo, das 91 notas de rodapé, 51 delas estão presentes apenas nos dois últimos números da LE; 41 notas só no penúltimo número do documento, sendo que 39 dessas foram de citações bíblicas. Isso expressa a preocupação do papa de fundamentar biblicamente a dimensão do trabalho na vida de Cristo, sobretudo porque Ele é tomado, na antropologia teológica católica, como o ápice da revelação do mistério da pessoa humana ao próprio homem, e como a chave antropológica da LE é marcadamente personalista, situar a dignidade do trabalho na Pessoa de Cristo é fundamental para que o trabalho na vida humana seja coroado com a centralidade e a dignidade que lhe foi atribuída no decorrer de todo o documento.

Cada pessoa humana e cada realidade da criação é obra do trabalho do Criador. A bíblia começa justamente apresentando a Deus como um trabalhador apaixonado que faz um trabalho que Ele mesmo reconhece como sendo “muito bom” (cf. Gn 1, 31). A nós seres humanos criou-nos à sua imagem e semelhança (cf. Gn 1, 26-27), impregnando-nos com o seu sopro de vida (cf. Gn 2, 7). Os relatos da origem são importantes luzeiros para a leitura da dignidade humana enquanto pessoa e da dignidade do trabalho em nossa vida. O próprio João Paulo II o afirma na LE:

Quando este [o ser humano], criado “à imagem de Deus… varão e mulher”, ouve as palavras “Prolificai e multiplicai-vos enchei a terra e submetei-a”, mesmo que estas palavras não se refiram direta e explicitamente ao trabalho, indiretamente já lho indicam, e isso fora de quaisquer dúvidas, como uma atividade a desempenhar no mundo. Mais ainda, elas patenteiam a mesma essência mais profunda do trabalho. O homem é imagem de Deus, além do mais, pelo mandato recebido do seu Criador de submeter, de dominar a terra. No desempenho de tal mandato, o homem, todo e qualquer ser humano, reflete a própria ação do Criador do universo. (LE, 4).

E o Catecismo da Igreja (CAT), ainda mais enfaticamente, diz: “O sinal da familiaridade com Deus é o fato de Deus o colocar [o ser humano] no jardim. Lá vive para ‘cultivá-lo e guardá-lo’ (Gn 2, 15): o trabalho não é uma penalidade, mas sim a colaboração do homem e da mulher com Deus no aperfeiçoamento da criação visível” (CAT, 378).

 

Perene atualidade da Laborem exercens

No ano de 2021 comemoram-se os 40 anos da publicação da LE. Sua temática segue atualíssima e as questões sociais envoltas ao trabalho continuam extremamente sérias.

Diante de um cenário que ainda insiste em subalternizar pessoas por meio da naturalização da exploração desumana do trabalho, redescobrir a dignidade inalienável da pessoa que trabalha é uma urgente tarefa. Do princípio que proclama a primazia da pessoa humana sobre quaisquer realidades sociais e laborais (cf. LE, 6) decorre também um outro importante princípio, o da primazia do trabalho sobre o capital. Ou seja, “o trabalho é sempre uma causa eficiente primária, enquanto o ‘capital’, sendo o conjunto dos meios de produção, permanece apenas um instrumento, ou causa instrumental” (LE, 12). Segundo João Paulo II, tal princípio “resulta da experiência histórica do homem” (LE, 12), indica uma complementaridade – e não oposição – entre trabalho e capital (cf. LE, 13), de tal forma que jamais se deve pensar que investir no desenvolvimento digno e integral da pessoa trabalhadora seja algo oneroso a uma empresa ou Estado. Sobre isso, o mesmo João Paulo II, 10 anos depois da LE, afirmou claramente em sua última encíclica social, Centesimus annus (CA), que “o desenvolvimento integral da pessoa humana no trabalho não contradiz, antes favorece a maior produtividade e eficácia do próprio trabalho” (CA, 43).

Infelizmente, em muitos lugares tem sido naturalizada a precarização do trabalho sob a prerrogativa de que ela é necessária para que seja garantido trabalho para as pessoas. Até mesmo há quem coloque em “xeque” a necessidade de existência de um Ministério do Trabalho nos países, considerando que “direitos trabalhistas” existem em excesso e seriam prejudiciais para a manutenção de postos de trabalho. É a lógica mercadológica revelando-se sempre mais anti-antropológica, fazendo reinar a primazia do capital sobre o trabalho, numa perversa inversão que transforma o ser humano em mercadoria e a mercadoria em valor “quase humano”.

À luz da Doutrina Social da Igreja, não é qualquer tipo de trabalho ou de situação laboral que conta como serviço à dignidade humana. Não vale qualquer coisa para simplesmente dizer que se aumentou o número de pessoas empregada. Para combater o desemprego não serve naturalizar o subemprego e chamar isso de “modernização” das leis trabalhistas.

Como bem expressou João Paulo II na LE, a realidade do trabalho possui duas dimensões: a objetiva (LE, 5), que se expressa no fruto material e/ou simbólico de nossa atividade laboral, no conjunto de atividades, recursos e técnicas de que nos dispomos para produzir; e aquela que se pode chamar de dimensão subjetiva (LE, 6), que se radica no próprio ser humano enquanto pessoa que trabalha e é o sujeito do trabalho, ou mesmo no próprio agir do ser humano como ser dinâmico e trabalhador, realizando a natureza laboral de sua humanidade. Como se pode ver, a dimensão subjetiva tem primazia, dado que é a pessoa humana o fundamento do valor do trabalho, donde decorre, enfim, “uma conclusão muito importante de natureza ética: embora seja verdade que o homem está destinado e é chamado ao trabalho, contudo, antes de mais nada, o trabalho é ‘para o homem’ e não o homem ‘para o trabalho’” (LE, 6). Só assim o ato de trabalhar, em suas múltiplas dimensões, poderá ser fonte humana de realização, e não de sua alienação.

https://www.youtube.com/watch?v=v6DfXAWwk4M

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