“Gamaliel: prudência e sabedoria”
A Primeira Leitura de hoje é de extrema atualidade, como toda a Palavra de Deus, para quaisquer tempos e situações. Na narrativa dos Atos dos Apóstolos, emerge um personagem icônico e paradigmático: Gamaliel, fariseu, mestre da lei e muito respeitado pelo povo (cf. At 5, 34). Os Apóstolos estavam presos e sendo julgados pelo Sinédrio (Grande Conselho dos Judeus em Jerusalém). Entre os membros do Sinédrio há um homem sem preconceito, marcado pela sábia prudência e respeito: Gamaliel, cujo nome significa “minha recompensa é Deus”. Interessante notar que no versículo 29, Pedro “respondeu juntamente com os outros apóstolos: ‘É preciso obedecer antes a Deus do que aos homens’”.
Gamaliel não se deixa levar pelo “efeito manada”, que significa seguir e correr na mesma direção, de modo impulsivo e acrítico, influenciado por pessoas intolerantes e autoritárias, não capazes de dialogar e de conviver com as normais divergências e diferenças, que com voz de comando transformam pessoas em manada manobrada pelo ódio, desinformação, interesses de poder e fake news. Manipular pessoas é diabólico, é ferir a dignidade humana, é menosprezar sua capacidade de discernimento e decisão, é coisificar o indivíduo. Gamaliel não era marcado pelo preconceito, por respostas prontas, por exclamação(!), mesmo sendo um fariseu que valorizava muito a tradição, o rigor e a lei. Era um homem prudente, sábio, sensato, de diálogo e serena reflexão. Não era pautado pela bravata, presunção e polêmica. Foi um instrumento de Deus para libertar pessoas inocentes, com justiça e sábia argumentação. Infelizmente, por conta do imediatismo e falta de reflexão, tomamos decisões e fazemos juízos precipitados, de acordo com a nossa visão de mundo e interesses, e não a partir da verdade dos fatos. Gamaliel utilizou o princípio da dúvida e não da certeza absoluta de estar em posse da verdade. Ah! Como precisamos aprender com Gamaliel!!! Como estamos distantes da postura dele!!! Senhor, tende misericórdia de nós e do mundo inteiro!
Recordo-me, quando seminarista, nos encontros paroquiais de formação bíblica, havia no grupo um senhor, muito sensato e prudente, na fala e na reflexão, que eu apelidei carinhosamente de Gamaliel. Era uma referência para mim, que me preparava para o sacerdócio. Sempre gostei muito da pessoa e postura de Gamaliel e, mesmo diante de meus limites e erros, procuro tê-lo como inspiração e modelo de prudência e temperança; duas virtudes cardeais, tão necessárias e aparentemente pouco valorizadas e aplicadas nas tensões, conflitos e escolhas, sobretudo nos âmbitos pessoal, relacional e político.
Sabemos que a Prudência é a “mãe” e o fundamento das virtudes cardeais e morais. Só quem é prudente pode ser justo, forte e temperante. Prudência não é sinônimo de indecisão constante, de ficar em cima do muro… Ao contrário, ser prudente é decidir retamente. Para tanto, é necessário conhecer a realidade, buscar a verdade das coisas e se deixar guiar pelo Espírito Santo e por Jesus, que diz “ide mais para o fundo, e lançai vossas redes para a pesca” (Lc 5,5). Urge sair da superfície e mergulhar na realidade concreta da vida. Decidir segundo a Vontade de Deus e a verdade, não segundo vozes que maculam o bom senso e interferem, negativamente, em nossas escolhas e atitudes, muitas vezes opostas aos ensinamentos de Cristo, nosso Mestre e Salvador. Somos o rebanho de Cristo e não manada de grupos e políticos. Queremos ouvir e seguir a voz do Bom Pastor, e não qualquer voz. Queremos discernir o que é voz de Deus e o que é diabólico, que divide e não constrói a vida e a justiça. O Conselho, um dos Sete Dons do Espírito Santo, está ligado à virtude da prudência e nos ajuda a discernir e a decidir retamente. Sem nos esquecermos de recorrer à Nossa Senhora do Bom Conselho, cuja festa celebraremos no próximo domingo dia 26.
Após citar dois líderes que atraíram pessoas e depois de mortos seus seguidores se dispersaram e tudo acabou, continua Gamaliel: “Quanto ao que está acontecendo agora, dou-vos um conselho: não vos preocupeis com esses homens e deixai-os ir embora. Porque, se este projeto ou esta atividade é de origem humana será destruído. Mas, se vem de Deus, vós não conseguireis eliminá-los. Cuidado para não vos pordes em luta contra Deus!” (At 5, 38-39).
Que inspiradas e sábias palavras! É tudo o que esperamos em situações de tensão, incertezas, dor e morte como agora vivenciamos. “Vivemos esperando dias melhores, dias de paz… Vivemos esperando o dia em que seremos melhores, melhores no amor, melhores na dor, melhores em tudo” (Jota Quest). Quantas discussões, pautas e provocações inúteis! Quantas palavras e ofensas jogadas ao vento! Cabe destacar que os membros do Sinédrio se deixaram levar pela inspirada argumentação e “aceitaram o parecer de Gamaliel”. Vejam, queridos irmãos e irmãs, a importância de alguém de bom senso e prudente num Conselho, Corte, Governo, Parlamento… numa família, no trabalho e em todos os momentos de tensões e conflitos, etc. Como um Gamaliel pode fazer a diferença! A questão é que nem sempre um Gamaliel é escutado e se escutado, não valorizado. Como seria bom que pessoas como Gamaliel ocupassem instâncias de poder e decisão ou ao menos, que fossem ouvidos com seriedade e acolhida humilde. Que os governantes, líderes, autoridades e servidores do povo sejam “Gamalieles” ou que os “Gamalieles” se tornem governantes, líderes, autoridades e servidores do povo… Isso também se aplica, primeiramente, é claro, à Igreja, a mim, a nós, a você e a todos os que querem ser,, autenticamente discípulos de Jesus. Senhor, que eu seja como Gamaliel: prudente, sensato e paciente! Amém!
A fala de Gamaliel se confirma: a Igreja não é um projeto ou atividade de origem humana. Ela vem de Deus, nasce do lado aberto de Cristo na Cruz e se confirma em Pentecostes. A Igreja prossegue e nós prosseguimos, com ela e nela. Como o nome Gamaliel indica, “Deus é a minha recompensa”, sabemos que “quem perseverar até o fim será salvo” (Mc 13,13). Portanto, vamos perseverar no amor, na prudência, nos valores cristãos, mesmo em tempo de pandemia, crise política, econômica e sanitária. Não permitamos que o humano entre em crise. Não podemos “nos colocar em luta contra Deus”, tampouco contra a Igreja e contra os irmãos e irmãs. Além de imitar Gamaliel, nas situações de paz e de conflito, precisamos, como Igreja viva, continuar a missão apostólica, com coragem e perseverança: “Os apóstolos saíram do Conselho, muito contentes, por terem sido considerados dignos de injúrias, por causa do nome de Jesus. E cada dia, no Templo e pelas casas, não cessavam de ensinar e anunciar o evangelho de Jesus Cristo” (At 5, 41-42). Vejam, no Templo e nas casas… agora nas casas apenas… logo no templo também. Quem sabe agora, por conta da quarentena podemos, de fato, conjugar Templo e casa, fé e vida, pessoa e comunidade, silêncio e fala, sujeito e sociedade… Ser sal e luz em qualquer situação!
Concluindo, recordamos um texto extremamente atual, diante de tantas perseguições, divisões e incompreensões, por pequenos grupos, de dentro e de fora da Igreja: “Virá a hora em que todo aquele que vos matar, julgará prestar culto a Deus. Agirão assim por não terem conhecido nem ao Pai e nem a mim” (Jo 16, 2-3). Em nome de Deus, podemos e devemos fazer o bem, jamais o mal. Precisamos obedecer a Deus e não aos comandos injustos e violentos dos homens. Como diz o mesmo Pedro: “será melhor sofrer praticando o bem, se tal for a vontade de Deus, do que praticando o mal” (1 Pd 3, 17). Vamos em frente… Semeando o amor e a prudência… vencendo o mal com o bem. Combater o “bom combate” e não os combates inúteis, que matam de várias formas e desviam a atenção do que realmente importa: “o Reino de Deus e a sua justiça” (Mt 6,33), a vida digna, o amor, a misericórdia e a paz. Vale a pena apostar em Gamaliel… O amor sempre vence! Nossa recompensa é Deus! “Fica conosco Senhor!” Eis o pedido orante que renovamos hoje e sempre… que será retomado no Evangelho do próximo domingo, e com o qual podemos continuar e perseverar na prática do bem e na difícil missão, irmanados na fé em Cristo Crucificado e Ressuscitado.
Com o meu abraço virtual, proximidade, orações e bênção,
Dom Luiz Antonio Lopes Ricci
Bispo Auxiliar de Niterói