Imago Dei e cuidado da vida
”Agora e em todos os tempos, Ele vem ao nosso encontro, presente em cada pessoa humana, para que O acolhamos na fé e O testemunhemos na caridade, enquanto esperamos a feliz realização de Seu Reino” (Prefácio do Advento II).
Após a celebração do Natal do Senhor, nosso olhar se volta para o novo ano, que apenas começou. Para que este ano seja, de fato, mais humano como foi proposto no texto anterior, urge voltar o nosso olhar para o ser humano, criado à Imagem e Semelhança de Deus, no qual estão a marca e o reflexo do Criador. Por essa razão, matar, deixar morrer ou não lutar contra a morte evitável e injusta é um ato destrutivo contra a vida e contra quem a criou. Na imagem de Deus (Imago Dei) está a fundamentação teológica do cuidado e defesa da vida. Mais que um direito humano, a vida é um direito divino: ao ofender a vida, ofende-se tanto o ser humano quanto a Deus que a criou e a quem pertence. Todos os atos de desrespeito à vida humana “ofendem gravemente a honra devida ao Criador” (Gaudium et Spes, n.27). Preocupa-nos grandemente, a constatação da banalização da morte e aceitação acrítica de atentados contra a vida nascente e já nascida.
A Igreja afirma a dignidade humana, fundamentando-a na imago Dei. “Justamente porque criado à imagem de Deus, o indivíduo humano tem a dignidade de pessoa; não é apenas qualquer coisa, mas alguém” (Bento XVI). A comunhão com Deus implica comunhão e serviço aos irmãos. O Criador confiou ao ser humano a responsabilidade de administrar a criação visível. Tudo foi confiado ao homem, inclusive a vida dos outros homens. Desse modo, o homem, definido como imagem de Deus tem valor absoluto, pois participa da natureza divina (cf. 2 Pd 1,3-4). “O valor absoluto do homem está no espírito. Se o homem é só corpo, só matéria, ele se torna, consequentemente, uma realidade manipulável, instrumentalizada e, portanto, não pode ter um valor absoluto, mas sim um valor instrumental; não mais simplesmente um fim, mas somente um meio. Assim, todos os crimes contra o homem tornam-se possíveis” (B. Mondin), com vários tipos de desrespeito à dignidade humana, chegando a transformar delitos em direitos (São João Paulo II).
O relato da Criação (cf. Gn 1,1-2,4) sublinha, de modo particular, a dignidade humana, pelo fato de o homem ser o depositário da confiança do próprio Deus, um herdeiro que deve cuidar da vida e de toda a criação a ele confiada e que, contemporaneamente, deve garantir não apenas o reconhecimento, bem como a promoção da dignidade humana.
Deus confiou ao homem toda obra da criação, com a seguinte fórmula solene: “Eu vos dou…”(Gn 1,29). A terra é confiada para ser casa da vida. O homem é colaborador de Deus e, como tal, é responsável pela vida que lhe é confiada: “vou pedir conta da vida de seu irmão” (Gn 9,5). O mundo é a casa de todos e casa da vida. O homem é aquele que está a serviço da vida. É no serviço e responsabilidade pela vida que se dá a semelhança com Deus. O homem é o único ser vivente que recebe de Deus uma tarefa particular: cuidar da vida.
O homem é imagem de Deus, quando se comporta e age de modo responsável na relação com as criaturas e natureza. Sabe-se que a questão ecológica tem suas raízes no assim denominado “antropocentrismo forte”. Tendo como fundamento uma interpretação errônea do “dominai a terra” (Gn 1,28), este modelo considera o mundo não humano como valor instrumental, enquanto é fonte de bem-estar para o homem. Consequência: exploração contínua e legitimada sobre a ideia de que os recursos da natureza são inesgotáveis, estando todos a serviço do consumo humano. Este antropocentrismo é egoísta e incapaz de considerar os interesses das gerações futuras, causando uma devastação desenfreada da natureza. Deus conferiu ao homem uma senhoria participada, porém isso não significa um poder absoluto, nem sequer liberdade de usar e abusar dos recursos naturais. Portanto, sendo a senhoria humana, uma senhoria participada, o homem não tem o direito e não pode exercitar sobre a criação um domínio despótico e sem limites. Luta-se hoje para formar a consciência de que o ser humano, à luz da Criação, tem uma responsabilidade especial sobre o ambiente, lugar onde se desenvolve a vida, que lhe é confiada por Deus. O homem recebeu de Deus a tarefa de ser o guardião e servidor da vida, não o dominador. “Dominar a terra” significa cuidar da vida.
É na criação que se encontra um sólido fundamento da vida a nós confiada, ainda que os homens não lhe correspondam plenamente, com responsabilidade. Nesse sentido, Noé é o paradigma do homem que cuida e salvaguarda a vida (cf. Gn 7), por mandato divino.
A passagem do caos ao cosmo operada pelo Criador fez do mundo o lugar da vida e nunca hostil a esta. Na criação encontram-se as motivações para reorganizar o cosmo, de tal modo que este seja o lugar da vida, tendo o homem como o guardião da mesma. Não basta o sim à vida e à dignidade humana, são também necessários vários “nãos” à realidade social tantas vezes hostil à vida, sobretudo dos pobres e vulneráveis. Por essa razão, a Criação oferece o fundamento e motivação para a luta contra a morte, injusta e evitável. O recurso à Criação é indispensável para a promoção da cultura da vida. Deus atribuiu ao homem uma importante função: cuidar da vida que lhe fora confiada, fazendo-se partidário da vida e amante do bem, com força invencível para superar os sinais e situações de morte. É com essa motivação bíblica e espiritual que iniciaremos, no próximo mês, a Campanha da Fraternidade, com o tema “Fraternidade e vida: dom e compromisso”. Vamos em frente, com ações concretas, na incansável defesa da vida humana, obra prima do Criador. Feliz novo ano! Mais humano!
Com a minha bênção e gratidão por tudo e por tanto,
Dom Luiz Antonio Lopes Ricci
Bispo Auxiliar de Niterói (RJ)