Oito Bilhões
Geraldo De Mori- Religioso Jesuíta
“Sede fecundos e multiplicai-vos, enchei a terra e submetei-a” (Gn 1,28).
O dia 15 de novembro de 2022 foi marcado pela notícia que a humanidade havia alcançado a impressionante cifra de 8 bilhões de pessoas. O sétimo bilhão tinha sido alcançado em 31 de outubro de 2011. As estatísticas preveem para 2050 a passagem para o nono bilhão e, para o final do século, a ultrapassagem do décimo bilhão de humanos no planeta. As cifras impressionam, embora as estatísticas apontem para o decrescimento a partir do final do século XXI. Durante a pandemia muitas pessoas reagiram ao fato de as vidas ceifadas pela Covid-19 terem se transformado em “números” e houve iniciativas bonitas propondo a substituição dos números por nomes, fotos, narrativas, reunidos em “memoriais”, como o dos “Inumeráveis” (Memorial Inumeráveis, Dedicado às Vítimas Do Coronavírus (inumeraveis.com.br). A questão levantada pelo nascimento do humano que elevou para 8 bilhões a população mundial não é mesma que surgiu durante as inúmeras mortes ocorridas durante a pandemia, mas ela não deixa de provocar o conjunto da humanidade sobre seu presente e futuro.
Alguns, talvez mais ingênuos e otimistas, poderão ver nesse número o cumprimento do que o autor do Gênesis apresenta como “ordem” do Criador: ser fecundos, multiplicar-se, encher a terra e submetê-la. Outros, talvez mais críticos e pessimistas, acolhendo as previsões catastróficas dos saberes que apontam para o ponto da não reversão ao qual chegou o planeta, veem nesse número o início do fim. O que a fé cristã propõe para pensar essa passagem ao bilionésimo ser humano? Até que ponto o ingresso nessa nova etapa da história humana deve suscitar temor ou esperança?
Durante bilhões de anos o planeta foi modelado por acidentes de grandes proporções, como os de choques de asteroides sobre sua superfície ou o de erupções vulcânicas e tremores que fizeram com que as placas tectônicas se movimentassem, delineando os atuais contornos dos continentes. O meio ambiente que foi se formando tornou possível, num determinado momento, a irrupção da vida, que por milhões de anos foi se adaptando e evoluindo, ganhando novas formas e dando origem à imensa diversidade que a caracteriza no planeta. Na narrativa criacionista do primeiro capítulo do Gênesis, o autor bíblico atribui o surgimento de toda a cadeia da vida a Deus, que, através de sua palavra performativa, cria, confere funções, aprecia e abençoa. No sexto dia, segundo a mesma narrativa, Deus criou o ser humano à sua imagem e semelhança e lhe deu a ordem de crescer, multiplicar-se, povoar a terra e a “dominar”. Essa teologia, própria da fonte sacerdotal, que, com a fonte javista e a deuteronomista, está na origem dos textos do Pentateuco, foi elaborada pelos responsáveis pelo culto e pelo cumprimento das prescrições legais do judaísmo pós-exílico. Ela via na geração dos filhos a continuidade do ato criador de Deus, fato importante em tempos de alta mortalidade infantil e de disputa por habitar um território tido como dom divino a Israel.
A humanidade só alcançou a incrível soma de 8 bilhões de seres humanos graças à ciência e à técnica, aplicadas não só a conhecer todas as dimensões do que existe no mundo, mas também a oferecer as ferramentas para proteger, cuidar e tornar a vida mais durável, combatendo doenças, oferecendo medidas de profilaxia e de cuidado, além de conseguir aumentar a produtividade dos alimentos que viabilizam a cadeia da vida. Certamente nesse processo houve e há muitos desvios, como os que têm sido denunciados pelos estudiosos do meio ambiente, que mostram como o crescimento “insustentável” põe em risco não só a vida humana, mas o futuro da vida no planeta.
Se por bilhões de anos a vida foi, sob muitos pontos de vista, determinada pelo lento processo de adaptação às adversidades do meio no qual ela se desenvolvia, nos últimos séculos, o ser humano tem determinado a maior parte dos processos que se dão na cadeia da vida. Por isso, muitos autores falam que o planeta entrou numa nova era, denominada de “antropoceno”, na qual a maioria dos processos, para o bem e para o mal, são definidos pelo fator humano. A pandemia do coronavírus, por exemplo, certamente tem origem num vírus, que alguns acreditam provir do morcego, mas sua transmissão só foi possível porque cada vez mais o ser humano ocupa todos os espaços, sem contar sua grande mobilidade, que tornou possível um índice de transmissão nunca visto antes. Algo parecido acontece no presente momento com os gases de efeito estufa, sobre os quais se realiza a COP 27, no Egito, que tenta criar leis para que os países se comprometam em reduzir sua emissão, pois eles afetam o conjunto do planeta, intervindo no processo de aquecimento global, que tem mudado profundamente o regime das chuvas, “enlouquecendo” o clima, provocando o derretimento de geleiras tidas como eternas, podendo, segundo os mais catastrofistas, inviabilizar a vida na terra.
Mas, para além das questões ligadas à sobrevivência dos 8 bilhões de seres humanos que, a partir do dia 15/11/2022, compartilham o mesmo espaço do planeta, grande parte delas reunidas ao redor do que o Papa Francisco, na encíclica Laudato si denomina de “cuidado da casa comum”, é importante recordar um outro evento ocorrido dois dias antes, o da Jornada Mundial dos Pobres, ocorrida no dia 13 de novembro. Na homilia da missa que celebrou antes de comer com um número importante de pobres em Roma, o Pontífice, comentando o texto do evangelho do dia (Lc 21,5-19), recorda como discernir os “sinais dos tempos”: primeiro, não se deixar levar por falsos discursos, muitos dos quais de pretensos gurus que se fazem “profetas da desgraça”, ou das sereias do populismo, que instrumentaliza as necessidades do povo, propondo soluções fáceis e precipitadas, ou ainda dos “falsos messias”, que proclamam receitas fáceis em função do benefício próprio; segundo, dar testemunho, que, no caso do Dia Mundial dos Pobres significa construir um mundo fraterno, empenhando-se em prol da justiça, da legalidade e da paz, permanecendo sempre ao lado dos mais frágeis[1].
Os grandes avanços tecnológicos são capazes de levar a humanidade a produzir alimentos para os 8 bilhões de pessoas que doravante compartilham o mesmo destino no planeta. Certamente é necessário que essa produção não se dê em detrimento do cuidado das fontes que tornam possível o mesmo planeta se regenerar, para continuar sendo o solo fecundo que poderá continuar abrigando a todos. Daí a importância dos acordos da COP 27 e do empenho de cada um em fazer sua parte. O profetismo da desgraça, denunciado pelo Papa, habita cada pessoa, como também a sensação de que os responsáveis pela destruição do meio ambiente são os outros, de que uma “andorinha não faz verão”. A essas atitudes paralisantes é importante opor a de uma imaginação criativa, que com o pouco consegue fazer milagres, não só alimentando quem está passando fome, mas abrindo possibilidades de futuro para quem vive ao lado.
[1][1] Ver Homilia do Santo Padre na missa do dia 13/11/2022, data da jornada mundial dos pobres. Disponível em Santa Messa in occasione della VI Giornata Mondiale dei Poveri (vatican.va), consulta: 16/11/2022.
Geraldo De Mori SJ é professor e pesquisador no departamento de Teologia da Faje