A agonia da afetividade

Evaldo D´Assumpção –  Médico e Escritor

Em 1946 a OMS definiu SAÚDE como “um completo estado de bem-estar físico, social e mental, e não apenas a ausência de doenças”. Já para definir e entender o que é FELICIDADE, muitos filósofos e pensadores nos deixaram valiosas pistas. Cito algumas: Para Aristóteles (324 a.C.- 322 a.C.) ela é a realização da potencialidade humana, através da prática da virtude, da honestidade e da justiça. Felicidade é ter algo que fazer, ter algo que amar, e ter algo que esperar. E completa afirmando que a felicidade e a saúde são incompatíveis com a ociosidade.

Para Ortega y Gasset (1883-1955), a felicidade existe quando “a vida projetada” e a “vida real” coincidem. Gandhi (1869-1948), dizia que a “Felicidade é quando o que você pensa, o que você diz e o que você faz, estão em harmonia”. Einstein (1879-1955) considerava que a felicidade não se resume na ausência de problemas, mas sim na nossa capacidade de lidar com eles. Concluo com o ensinamento do médico e teólogo Albert Schweitzer (1875-1965) que disse: “O sucesso não é a chave da felicidade. A felicidade é a chave do sucesso. ” Refletindo sobre tudo isso, penso que a felicidade é também o manifestar e o desfrutar da afetividade. Que se resume nos gestos e na expressão de afeição, gentileza, carinho, afabilidade, bondade. E é por isso mesmo que, observando o crescente estado de mal-estar da humanidade, acredito que estamos vivendo a “agonia da afetividade”.

Volto rapidamente ao período que vai do segundo lustro dos anos 40, quando terminou a 2ª Guerra mundial, até o final dos anos 60, quando aconteceu, em 1969, nos EUA, o Festival de Woodstock. Logo em seguida, veio a decadência do movimento hippie, com a morte por overdose, de muitos dos seus principais personagens. Esse movimento, cujo lema era Paz e Amor, foi naquele país uma reação a escalada de violência entre Estados Unidos e União Soviética, durante a Guerra Fria, e a guerra do Vietnã, que envolveu os EUA no período de 1965 a 1975. No Brasil, nessa época o romantismo ainda suplantava o hedonismo e os jovens eram idealistas, voltados para os estudos, e buscando sua profissionalização e constituição de uma família estável. Influenciado pelo movimento hippie americano, em 1967 aconteceu em São Paulo o 3º Festival de Música Popular brasileira, dando início ao Movimento cultural de vanguarda Tropicalista. Que era também uma contestação ao governo militar implantado no Brasil, em 1964, contra o comunismo que se tentava instalar em nosso país. Em 1968, com a prisão e saída do país de seus principais líderes, o movimento perdeu toda a sua força. Contribuiu para isso a reação das famílias e de muitos jovens que tinham outros ideais. Com isso, em que pese certas ações pseudorrevolucionárias que aconteciam esporadicamente, sempre reprimida pelos militares, a vida no país transcorria com tranquilidade, prevalecendo normas e comportamentos conservadores. Especialmente em Minas Gerais, onde namorar era o sonho de todos os jovens. Nesse ritual, levava-se algum tempo para pegar a mão da namorada; aos domingos, ia-se ao cinema assistir as sessões das 16 horas, especialmente nos cines Metrópole, Brasil, Guarani, Tupi, Tamoio, com a rapaziada indo, em seguida, para a Avenida Afonso Pena assistir o passeio das mocinhas no quarteirão da loja Sloper. Depois, fazia-se um lanche na Camponesa ou no Xodó, na praça da Liberdade, onde também havia o “footing”, com as meninas passeando pela alameda e os rapazes reunidos em grupos, tentando alguma paquera. Às 20 horas, muitos seguiam para as horas dançantes no Minas Tênis Clube, no DCE, na Sociedade dos Engenheiros, nos Diretórios Acadêmicos de algumas Faculdades. As moças iam com suas mamães, e ali nasceram romances que levaram muitos casais aos altares. Afinal, o casamento na Igreja era o ápice para muitas famílias. Meia-noite, praticamente tudo terminava, pois no dia seguinte, as aulas e o trabalho eram retomados com seriedade. E raramente ouvia-se falar de assaltos pelas ruas da cidade.

Em síntese, a vida corria mansamente, e as pessoas se cumprimentavam quando cruzavam pelas ruas. Haviam problemas, é verdade, mas dentro de uma proporção tolerável quando comparadas com a tranquilidade geral. As fisionomias das pessoas eram quase sempre abertas, leves; gentilezas aconteciam no ceder a passagem, no abrir portas, no se despedir. A afetividade se manifestava nos gestos de afabilidade, na cortesia sempre presente, nas conversas descontraídas, nos retornos às ligações telefônicas.

Hoje, isso já não se vê. As pessoas se cruzam pelas ruas, caminhando apressadas, preocupadas e temerosas. O medo substituiu os cumprimentos. Afinal, ninguém já se conhece, e sem conhecimento formal, não há afabilidade. Nas casas, nas famílias, os filhos não pedem a benção de seus pais, e os casais mal se falam, quase sempre envolvidos com seus negócios ou com suas conversas “whatzapianas” e assemelhadas. As refeições, raramente se fazem com todos reunidos. Ninguém tem mais tempo para isso. No trânsito, gentileza é coisa do passado, e palavrões complementam as manobras intempestivas. Nas divergências esportivas, políticas, ideológicas, já não se conversa, mas se digladia, ironiza e desrespeita. Por vezes até gerando inimizades. Escasseia-se a afetividade, que agoniza.

A lista é enorme e faço apenas algumas constatações, deixando a sugestão para que cada um, se achar conveniente, que converse consigo mesmo diante do espelho, e não censure os outros. Faça a sua parte: simplesmente corrija-se.

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(*) Médico e Escritor. Da Academia Mineira de Medicina e da Sociedade Brasileira de Médicos Escritores. Autor dos livros “Sobre o viver e o morrer”, “Luto”, “Suicídio” e “A morte em três tempos”, da Ed. Vozes; “Crônicas à beira-mar”, da Ed. Del Rey. Também os dois volumes de suas memórias,

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