O Tesouro do Catecismo, a Fé e a Teologia
Rodrigo Portella – Professor
A Igreja sempre conheceu, desde suas origens bíblicas, diversidade teológica. A diversidade teológica reflete a busca reflexiva dos cristãos para compreender da forma mais exata possível – até onde permita nossa sensibilidade e inteligência humanas – os mistérios da Fé revelados, cujo centro é Jesus Cristo. Faz parte da nossa condição humana, enquanto seres dotados de alma racional e volitiva, a compreensão do que vivemos e cremos. Claro está que tal compreensão, ao se tratar da ordem do divino, é limitada por nossa humanidade, mas iluminada pela Graça de Deus, que prometeu Seu Espírito à Igreja (Jo 14, 16-17; 20, 21-23; At 2, 1-4). Assim, os dogmas da Fé, contidos no Credo Niceno-Constantinopolitano e exarados pelos Concílios Ecumênicos e pelo Magistério extraordinário da Igreja são, pela reflexão teológica, continuamente interpretados conforme deitam suas raízes em épocas e circunstâncias diversas. Tais interpretações pretendem aclarar as verdades da Fé conforme os contextos em que tais verdades são proclamadas. Contudo, tais esforços interpretativos, embora possam – e devam – ser acompanhados da oração e da Graça, não têm caráter de infalibilidade ou vinculação para a reta compreensão da fé. Daí que, por melhor que o cristão e o teólogo estejam, espiritualmente e intelectualmente, preparados para a compreensão das verdades cristãs, suas conclusões são sempre provisórias e deficientes. Entretanto, existem textos elucidativos aos quais a Fé deveria estar vinculada e, a partir deles, ter seu sustento básico, quer dizer, textos que formam a base de toda outra reflexão posterior. Tais textos, para além dos documentos pontifícios de seu Magistério ordinário, são os Catecismos.
Entrementes, também os Catecismos, que podem ser muitos, são compostos e articulados em contextos diversos e por pessoas e instituições diversas (como dioceses e conferências episcopais), a dar as razões da Fé para cenários humanos, sociais e eclesiais específicos. Portanto, embora esteios importantes para a compreensão basilar da Fé, não podem ser tomados como referências unívocas, mesmo nos ambientes em que se enraízam. Neste sentido, somente os Catecismos compostos a partir da Santa Sé, isto é, da cabeça da Igreja que ordena e conduz os membros do corpo de Cristo, podem ser base reflexiva segura para a compreensão da Fé.
Não resta dúvida, porém, que também tais Catecismos têm a influência de determinadas circunstâncias históricas e teológicas. Contudo, entre todos os que também as têm, eles são não só os mais universais – quer dizer, os mais católicos, ou seja, para toda a Igreja -, como, a se crer que a Sé de Pedro detém as chaves e a promessa do Espírito da Verdade, são sempre os mais seguros e ortodoxos para a reta compreensão dos mistérios da Fé e, por isso, têm, por emanados da Sé de Pedro, um caráter que pode – deve – ser tido como vinculante sobre o conhecimento e a interpretação básica dos dogmas e verdades da Fé. A Igreja Católica, portanto, compreende que o seu Catecismo é o compêndio oficial dos ensinamentos da Fé, pois favorece a unidade eclesial ao procurar não reproduzir opiniões e teologias de grupos, mas a Fé da Igreja universal “sempre crida por todos e em todos os lugares” (São Vicente de Lérins).
Mas digo os Catecismos, posto que afinal são três os que nos aparecem hoje: O Catecismo da Igreja Católica (promulgado por São João Paulo II, em 1992); o Catecismo Romano destinado aos párocos (promulgado por ordem de São Pio V, em 1566), e, mais resumido, o Catecismo da Doutrina Cristã de São Pio X, que pretendeu ser uma síntese do Catecismo Romano, em estilo mais popular e fácil de perguntas e respostas. Embora seja o Catecismo mais recente o que está, atualmente, em vigor, a leitura dos demais é também salutar, desde que lidos contextualmente e como obras auxiliares ao Catecismo atual e à sua luz. Aliás, todo e qualquer texto necessita, para a sua justa compreensão, de leitura contextual. O Catecismo mais jovem da Igreja, entretanto, é o que concentra e reflete mais tempo de vida da Igreja, e por revelar ângulos sobre questões da Fé que não estavam explícitos em épocas passadas – mas que por circunstâncias novas necessitam de respostas hoje -, é o que complementa os demais. Também a Didaquê, o primeiro “Catecismo” conhecido da Igreja, que data por volta do ano 70 d.C.(!), continua precioso e útil, não obstante sua antiguidade (ou até por causa dela)!
A leitura dos Catecismos emanados da Santa Sé – todos refletem, mutatis mutandi, a doutrina de Fé da Igreja -, deveria ser, após a Bíblia e o Símbolo Niceno-Constantinopolitano ou Apostólico, a leitura primeira e básica do cristão, e principalmente do teólogo em seu teologar. No mínimo e principalmente, eu diria, a leitura do Catecismo mais recente, posto que é o que vigora como oficial, hoje, para a Igreja. Os Catecismos da Igreja são a síntese, o resumo feito com exatidão – a possível, é claro -, e com ortodoxia do que deve ser a norma, a régua de toda reflexão e vida de Fé. Reflexão teológica que contradiga – mesmo que por ambiguidades de linguagem – os Catecismos da Igreja Católica, não apresenta a Fé católica tal como ela é, independentemente de qualquer outra circunstância.
Portanto, embora hoje possa parecer, a alguns católicos, “politicamente correto” e sinal de evolução teológica dizer-se, em seminários, paróquias e outros ambientes, que não existem anjos, diabo, inferno, purgatório, às vezes mesmo pecado, entre outros muitos temas por vezes considerados antipáticos a causar escândalo para as mentalidades modernas – ou mesmo simplesmente silenciar tais assuntos, – é necessário pontuar que não é boa e correta teologia católica tais dizeres ou omissões, a não se conformar com a Fé da Igreja sumariada nos Catecismos. A doutrina católica não pode ser, principalmente para as lideranças católicas, uma espécie de self service, em que se escolhe o que mais apetece e deita-se fora aquilo com o que, por quaisquer motivos, não se concorda ou se considera “ultrapassado” segundo os cânones das ciências e culturas modernas. Há, na doutrina cristã, temas que podem parecer indigestos ou estranhos à cultura moderna, mas se são temas que compõem, necessariamente, a doutrina católica, não podem ser olvidados. A honestidade teológica em ser fiel, em sua reflexão, aos princípios e doutrinas da Fé apresentados e sintetizados pela Igreja em seu Catecismo é – ou deveria ser – fundamento e compromisso primeiro do teologar. E se o Catecismo da Igreja Católica, como exposto, é norma segura e ortodoxa para viver e compreender a Fé, não lê-los e não assentir a eles com docilidade pode ser sinal de pouca humildade teológica e do individualismo (pós)moderno que faz com que as pessoas confiem mais em si mesmas – isto é, coloquem a fé mais em si, em sua própria inteligência, subjetividade e na cultura moderna que as (in)forma – do que na Sé de Pedro enquanto mãe e mestra a dizer, pelos Magistérios ordinário e extraordinário – eles sumariados nos Catecismos – a Fé de Pedro, a pedra em que se deve edificar a casa da Fé, para que esteja ela segura e não caia com os ventos e marés de cada época e de cada cabeça (Mt 7, 24-25).
Ao fim e ao cabo, o(s) Catecismo(s) da Igreja Católica, na sua forma simples, direta, mas profunda e ortodoxa de exprimir os mistérios da Fé, cumpre a gratidão da oração feita por Nosso Senhor: “Eu te bendigo, Pai, Senhor do céu e da terra, porque escondeste estas coisas aos sábios e entendidos e as revelaste aos pequenos. Sim, Pai, eu te bendigo, porque assim foi do teu agrado” (Mt 11, 25-26). Leiamos os Catecismos, e sejamos como “o escriba instruído acerca do Reino dos céus (que) é semelhante a um pai de família que tira do seu tesouro coisas novas e velhas”.
Rodrigo Portella – Professor no Departamento de Ciência da Religião da UFJF/Brasil