Abrace seu medo e descubra sua finalidade

O medo faz parte da nossa vida.

Ninguém gosta de admitir, mas não há pessoa completamente destemida; o medo é essencialmente humano, podendo ser um sistema de alarme que nos alerta contra perigos e mobiliza forças em nós para nos proteger. Sendo inato no animal, ele o alerta para que fuja e o fortalece para o ataque. Se nós humanos não tivéssemos medo não teríamos medida, atreveríamos a fazer coisas que não nos fariam bem. Mas há também aquele medo que paralisa, que nos domina e nos retrai cada vez mais. Nas empresas é o medo da falência, mas também o medo de superiores imprevisíveis ou de decisões sobre as quais não temos influência. Nessa gama de medos há aqueles específicos, as fobias; por exemplo, medo de viajar de trem. A claustrofobia, medo de espaços fechados, fobia a aranhas, a bactérias. E há os ataques de pânico que de repente nos acometem. A ansiedade do pânico surge quando já não sabemos como reagir, ficando irremediavelmente expostos a ele. Qualquer pessoa que tenha experimentado ansiedade de pânico muitas vezes sente-se paralisada pelo medo do medo; fica temerosa que o pânico possa atacar novamente. Ninguém é destemido – a dupla face do medo. 69 Assim que o medo aumenta ela entra em pânico, temendo que fique exposta e indefesa. Temos medo de não conseguir administrar nossa vida, de falhar no trabalho, receio de que o nosso relacionamento fracasse, de que nossos pais morram e fiquemos sós. Temos medo de ficar doentes. À noite ele nos ataca nos sonhos. Há medos que são associados à história da vida. Se a mãe está ansiosa, isso afeta a criança. O medo do porão escuro, que algumas crianças têm, pode indicar que a pessoa não quer aceitar algo obscuro nela. Ou a ansiedade aumenta em determinadas situações porque, por exemplo, quando criança, a pessoa sofreu um acidente de trânsito. Muitas vezes ele parece infundado, mas sempre tem um significado. Se não tivéssemos medo, estaríamos vulneráveis. Hoje as pessoas querem se livrar do medo porque é considerado negativo, algo que não deve existir. Mas o medo do próprio medo pode se tornar monstruoso. Queremos estar livres de tal medo.

Mesmo que seja desagradável, sob nenhuma circunstância devemos suprimir o medo. Quanto mais lutarmos por sua extinção, mais ele nos perseguirá. Isso pode ser constatado tanto em termos psicológicos quanto espirituais. Se uso métodos psicológicos para combater a ansiedade, isso pode aumentá-la; se eu orar para bani-lo, ele se fortalecerá. Muitos devotos pedem a Deus para tirar seu medo, mas com isso estão usando Deus como um feiticeiro para torná-los imunes. Isso não funciona. O caminho espiritual para transformar o medo é conversar com ele. Primeiramente devo me perguntar: “Do que eu realmente tenho medo?” “Qual é o meu medo concreto?” É o medo de falhar ou cometer um erro? O medo de não fazer alguma coisa? O medo da doença ou da morte? O medo do futuro, o medo de desastres imprevisíveis?” Somente quando reconheço a natureza específica do meu medo posso saber seu significado: “O que o medo tem a me dizer? O que me assusta? Por que estou com medo? Ele me leva a pressupostos errados para minha vida, a padrões exagerados aos quais me submeto, ou a uma autoimagem que não corresponde à minha realidade e me subjuga?” Esse sentimento pode se tornar um professor. Ele me convida a encontrar padrões mais saudáveis para a minha vida. Em vez da suposição básica, “não posso cometer um erro, senão não valho nada, senão serei rejeitado”, o medo me convida a apostar em atitudes mais realistas, como: “Posso cometer erros e, ainda assim, sou valioso. Minha apreciação por parte das pessoas não depende de meus erros nem do meu constrangimento. O medo me encoraja a ser mais compassivo comigo mesmo, não me sobrecarregando constantemente com expectativas exageradas de mim mesmo”. Seria irrealista acreditar que podemos eliminar os medos radicalmente e para sempre. Nunca poderemos nos livrar completamente dele, mas sim nos libertar de medos incapacitantes ou ataques de pânico, e muitos são vítimas deles. Há uma categoria de medo que nos deixa tontos. Então queremos suprimi-lo pela força, mas isso torna-o ainda mais forte. Se, por outro lado, sentirmos imediatamente o nosso medo, deixá-lo entrar e falar conosco, ele irá embora. O medo nos convida a nos sentir. Muitas vezes ele mostra que estamos muito focados nos outros e pensamos que eles estão constantemente nos observando. A percepção atenta nos leva de volta a nós mesmos.

Indistintamente temos medo, e isso nos acomete não somente em situações extremas. Mesmo as pessoas jovens e saudáveis podem conhecer o medo de adoecer de câncer, por exemplo, ou ficarem paraplégicos devido a um acidente. Se percebermos nosso medo de ficar doente, isso é um convite para nos sentirmos sob a bênção de Deus. Nesse caso o sentimento de medo é justificado, pois nos mostra a fragilidade da nossa existência. Não podemos garantir nossa saúde; podemos ficar doentes. Admitindo os perigos que podem ser causados por doença, aceitamos nossa fragilidade e, ao mesmo tempo, confiamos em Deus. Pedimos a Ele que nos mantenha longe da doença, mas também a segurança de sempre estarmos acompanhados de seu amor, mesmo na doença. Assim, o medo se transforma na confiança de estarmos sempre nas boas mãos de Deus, nos maus e bons momentos, na saúde e na doença. Isso relativiza o medo da doença. O medo é inerente à existência humana. Em sua famosa obra Sein und Zeit (Ser e tempo), 1927, Martin Heidegger descreveu o medo como a condição básica do ser humano. Esse sentimento nos mostra que “não estamos em casa” no mundo; “a condição de ter medo é a própria situação de estar no mundo”. Esse filósofo nos diz que o medo nos obriga a descobrir a nossa “autenticidade”, para saber quem realmente somos como seres humanos; mostra a essência da existência humana. Para a teologia, que leva a sério as análises filosóficas de Martin Heidegger, o medo se torna um convite para finalmente encontrarmos nossa vida em Deus. Coloca-nos ante a questão de como realmente nos definimos. Se o fazemos a partir das pessoas e de suas expectativas e opiniões ou a partir de Deus? De modo salutar, o medo pode nos direcionar para Deus; por isso esse sentimento não é o oposto da fé. Pelo contrário, ele nos leva continuamente a Deus se buscamos a razão nele, e não na segurança externa ou no reconhecimento dos outros.

Todos nós, não só os idosos, enfrentamos o medo da morte. Isso é inerente ao ser humano. A psicoterapia existencial, desenvolvida por Irwin D. Yalom, acusa a psicanálise clássica de Sigmund Freud de ter ignorado completamente o fenômeno do medo da morte. Mas o sucesso da vida – diz Yalom – depende de enfrentarmos o medo da morte e integrá-lo em nossa existência. Uma boa parte das doenças mentais são, em última análise, uma tentativa de evitar o medo da morte, e a cura só tem sucesso quando enfrentamos esse medo específico. Também nesse caso é importante conversar com esse medo: “Do que exatamente tenho medo? É o medo de deixar minha vida e a mim mesmo, perdendo muitas coisas que seriam boas? É o medo de deixar outras pessoas?” – A mãe tem medo de morrer porque seus filhos ainda precisam dela. Ela quer continuar os acompanhando. Ou é o medo da perda de controle? Ou o medo do desconhecido, que nos espera na morte? Medo de condenação, medo de Deus e medo de depararmos com a nossa verdade? Só a conversa com o nosso medo pode transformá-lo. O medo de deixar as crianças sozinhas deve ser transformado na confiança de que elas estão nas mãos de Deus. O medo de perder o controle quer nos levar à confiança de que tudo que pode surgir pode ser aceito e transformado por Deus. Não precisamos ter medo de nada, porque Deus sabe tudo. Pode-se simplesmente ter o vago e típico medo de morrer. A título de exemplo cito o caso de uma mulher que simplesmente deixou de sair de casa. Ao questioná-a sobre sua motivação para isso, ela me respondeu que poderia cair morta. – Não mencionei o medo, pois assim eu passaria a imagem de que não a estaria levando a sério. Disse-lhe: “Sim, pode ser que você caia morta. Mas agora, no momento em que fala comigo, você ainda está viva. Esteja ciente deste momento como se fosse o último. E quando você sai pela porta, ainda está viva. Sinta o vento e o sol. Perceba as pessoas que você conhece. Assim, irá viver intensamente. O medo da morte convida-a a viver o momento e a perceber intensamente o que está vivenciando no agora”. A morte nos convida a aproveitar com gratidão o nosso tempo de vida, aprofundando conscientemente nosso relacionamento com as pessoas.

 O primeiro passo de transformação é a conversa com o medo. Nessa conversa nos familiarizamos com ele, passando a abordá-lo de uma maneira mais intelectual, o que já nos dá uma certa distância de seu efeito. O segundo passo é imaginar o que nos causa medo, imaginando, por exemplo, que podemos cometer um erro, desmaiar, que ficar doentes. Isso seria tão ruim? Assim imaginando, neutralizamos o medo. E o terceiro passo: entendemos o medo como um amigo que nos dá uma atitude diferente em relação à vida. Isso pode ser a supressão do perfeccionismo ou ganharmos a confiança de que, mesmo na doença e na morte não podemos cair da boa mão de Deus. Ou ainda vontade de termos Deus como referência, em vez do reconhecimento alheio.

Jesus diz muitas vezes na Bíblia: “Não tenha medo!” No entanto, também a Bíblia narra que Ele mesmo temeu a morte violenta na cruz, demonstrando esse sentimento no Jardim do Getsêmani. Um anjo o fortaleceu. Mas Ele nos mostra formas de terapia do medo? O que nos disse sobre a supera- ção de nosso medo? Mencionamos uma terapia ensinada por Jesus, no Evangelho de Mateus, a respeito de dois tipos muito concretos de medo. Nesse discurso Jesus quer tirar de seus discípulos o medo, que poderia impedi-los em sua aparição pública: “Não tenhais medo deles; porque não há nada encoberto que não venha a ser revelado, nem escondido que não venha a ser conhecido. Dizei à luz do dia o que vos digo na escuridão, e proclamai de cima dos telhados o que vos digo ao pé do ouvido. Não tenhais medo dos que matam o corpo mas não podem matar a alma. Deveis ter medo daquele que pode fazer perder-se a alma e o corpo no inferno […]” (Mt 10,26-28). Dois tipos de medo são mencionados nesta passagem e, ao mesmo tempo, maneiras pelas quais ele pode ser transformado. O primeiro deles é o nosso medo do desconhecido. Muitas pessoas que se apresentam em público ficam com medo de que seus espectadores ou ouvintes possam descobrir suas fraquezas. Temem que os outros vejam através de sua aparência e descubram suas fraquezas escondidas, fantasias e falhas ocultas. Com esse medo, essas pessoas pensam: “Se os outros soubessem que pensamentos negativos eu tenho, que medos eu tenho, ou que mal eu causei a outros, todos me rejeitariam”. Como terapia para esse medo, Jesus declara: Deus sabe tudo, nada está oculto de Deus. Portanto, entrega tudo o que é oculto a Deus, ao amor dele, e não terás mais medo. Você não precisa mostrar o oculto a todas as pessoas, mas se o fizer a Deus, perderá o medo de estar escondido em si mesmo, de que os outros descubram algo oculto em você, porque nada está dele. Saiba que nada há em você que não seja aceito por Deus, que não seja permeado por seu amor. O segundo medo é o de ser ferido. Qualquer um que apare- ça publicamente pode ser criticado. Hoje as pessoas estão viciadas em criticar aquelas que se apresentam em público, espionando seus erros e revelando-os coletivamente. O medo impede que muitos se mostrem em público, e como forma de transformá-lo, Jesus aconselha: “Os outros podem matar o seu corpo, ferir sua psique, suas emoções ou machucá-lo fisicamente. Mas não podem ferir o reino interior – o reino da alma. Existe em você, no fundo de sua alma, um espaço de silêncio. Nele, as palavras ofensivas dos outros não podem, nem mesmo a violência física pode pôr em perigo esse espaço. Lá você é inteiro; lá está protegido. A experiência desse espaço interior, o espaço sagrado que é pleno e saudável, transforma o medo. Emocionalmente, o medo ainda existe, mas quando passamos da ansiedade emocional para o fundo da alma, ele se torna relativo, perde seu caráter angustiante.

Vemos que Jesus não tira o medo ou o suprime, mas o verbaliza. Ao mesmo tempo, mostra maneiras pelas quais esse medo pode se abrir a uma realidade mais profunda. Com esta sabedoria de Jesus podemos aprender como lidar com esse sentimento. Não se trata de estar completamente livre dele, mas de abordá-lo de tal forma, que ele nos ponha em contato com o espaço interior do silêncio e nos leve cada vez mais ao encontro de Deus. Nesse espaço podemos aceitarmos nosso medo e nos sentirmos seguros. Essa experiência de sermos aceitos com nosso medo, quando o experimentamos, liberta-nos instantaneamente desse sentimento. A título de exemplo, cito um caso concreto do medo do pú- blico e de se constranger. Uma cantora me disse que tinha medo do palco antes de cada apresentação. Ela não diminuiu esse seu medo do palco com drogas psicotrópicas, mas trabalhando-o conscientemente. Para ela, sua prática rotineira de cantar não lhe garantia bom desempenho. Ela mudou de foco, assumindo que todo canto bem-sucedido fosse um presente. Assim, ela se tornou permeável ao mistério da música. Alguém disse a ela: “Você não cantou; o canto é que saiu de você”. O medo libertou aquela cantora do seu ego, ou pelo menos liberou seu ego para algo maior.que o medo que destrói o ego que, por sua vez, quer dominar e controlar tudo –, tornando-nos permeáveis a algo maior. Isso pode acontecer no cantar, no pregar, no palestrar ou fazer outras coisas diante de outras pessoas. Então sentiremos que o medo tem um significado, que não devemos lutar contra ele, mas nos permitir utilizá-lo para algo mais nobre. Assim, o medo pode ter um efeito positivo se o tratarmos bem, se perguntarmos a ele sobre seu significado e se fizermos dele um amigo que quer chamar nossa atenção para algo essencial. Em outras palavras, ele quer nos mostrar que somos humanos, e não Deus, e que no final encontraremos uma definição em Deus, e não em nós mesmos ou em nossa própria força. Portanto, o medo pode nos abrir a uma realidade mais profunda. Ritual Este é um ritual para lidar com o medo do oculto. Pergunte a si mesmo: O que eu quero esconder de mim mesmo, de Deus e das pessoas? O que é desconfortável em mim? O que não pode ser conhecido externamente? Então imagine como o amor de Deus invade tudo o que está oculto. Você não precisa esconder nada dele, pois é conhecido por Ele. E o amor de Deus cuida exatamente do que você não gosta de olhar em si mesmo. Então, passe a olhar para o desagradável com novos olhos. Imagine que tudo em você está impregnado do amor de Deus. Aí o medo do caos interior, do vulcão interno, da ameaça perde seu sentido. Tudo em você pode existir, porque todo o seu ser está cheio da luz de Deus.

 

Trecho do livro Abrace suas emoções – Anselm Grün – Editora Vozes

Posts Similares

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *